domingo, 10 de outubro de 2010

castigo primordial


Não sou heroína de nada, nunca salvei ninguém que estava se afogando, nem que iria se jogar do décimo andar. Por isso o castigo que me deram foi a liberdade total, provinda da solidão mais solta, mais desconectada, quase voadora. Estou aprendendo a amparar-me nas paredes, colando nelas figuras de artistas, escritores, recadinhos de seres que estão no passado, ou uma oração, uma santa, pois que preciso de ajuda do além; quando meu queixo cai por exemplo: se não fossem as entidades enfermeiras que me acompanham, hoje eu estaria com a boca tortíssima, com o queixo pendurado no pescoço. Tenho crenças, meu amigo, crenças fracas, às vezes fraquíssimas, mas crenças. São elas talvez que me sustentam nesse silêncio isento de qualquer bulha. Oh, como gosto dessa palavra: bulha. Palavra antiga, lembra crianças gritando, azáfama de pratos tilintando na cozinha, festa de família, festa de domingo. Mas se nunca fui heroína, por que mereceria uma bulha dessa? Nunca fui sequer mulher de herói, nunca serei Penélope. Para que distintivo, portanto? Mereço, e bem merecido, essa liberdade inútil. Liberdade que tolhe os movimentos, que lhe joga na cama, e lhe ensina aula prática de solidão. Aula prática de solidão é assim: corpo inerte. Aula teórica é entendimento filosófico-existencial dessa coisa verdadeira que é a solidão: você sai da aula entendendo tudo, e bem forte - compra mil livros e mil filmes e vivencia bastante essa coisa rica que é finalmente entender-se só. Dorme tranquilo, só, e acorda, tranquilo, só. Porém, na aula prática você é um verme, sabe-se verme, e sequer tem vontades de abrir o olho pela manhã. Vira personagem sartreano, camusiano, sabe-se parte de um estrangeirismo sem limites, e nem se importa se for condenado à morte sem culpa. Nada lhe importa. Esse é o resultado da aula prática. Às vezes evoluo muito na aula teórica. Faço ricas autoanálises, e em grandes momentos acho-me madura, quase heroína de mim mesma. Mas o meu maior rendimento, de fato, é na aula prática. Cair é sempre mais fácil, dormir idem, se ausentar, morrer, aceitar sem revide, deixar de existir. Esse é o preço módico de ser livre; castigo primordial por nunca ter livrado alguém de um naufrágio ou do suicídio.


Imagem: "crime e castigo". www.google.com.br

4 comentários:

Marcantonio disse...

Minha cara, esse é um texto para ser guardado num mural da sala de aula que fica entre o meu cérebro e o meu coração. Que achado essa distinção entre a praxis e a teoria da solidão! Mas, bem, talvez não se trate de engenho, mas de um ato revelador de escrita que une sentimento e razão, ao mesmo tempo atrativos e repulsivos entre si. Mas me ocorre que assim também podem ser a prática e a teoria. E no caso da solidão, a prática inevitavelmente acaba por se impor à teoria, num silêncio final, salvo se dispusermos de uma crença que se aceite mesmo como absurda. À mim, infelizmente, não socorrem tais crenças que exigem desviar o olhar do mais rude sol.
Claro que virão por aí notas e reclames otimistas, mas incapazes de atingir a beleza ardente (e só ela é de fato ardente)do pessimismo.
Que estranho advogado da vida eu sou. Inábil para heroísmos e responsabilidades, me vejo retratado nessa liberdade angustiosa, talvez nula. Olho um enorme edifício, um teto de capela Sistina, ou a habilidade de um neurocirurgião aplicada sobre o destino do outro, e me pergunto: O que sustenta isso? E prossigo sem compreender, enredado na minha vã liberdade sem crenças.

Coloque todo este escrito na conta do que o seu texto provocou em mim.

Um abraço de admiração.

Gerana Damulakis disse...

Como ser mais talentosa a cada texto, meu Deus!

logo mais telefonarei

Terráqueo disse...

Esse foi o livro que mais me impressionou até hoje. Eu sonhava com os personagens durante os dias em que estava lendo. Esse trecho é maravilhoso. Bjs.

Centelhas do outro disse...

Muita clareza nessa sua exposição de luz e sombra. Acho que aí está o equilíbrio.
Abraço.