domingo, 3 de outubro de 2010

infância


Freud me encanta, e a cada livro dele que leio saio inebriada, algo inerente à literatura. Concordo e muito com o que ele acreditava ser a grande dificuldade dos homens: sair da infância. A infância nos persegue assim como, quando crianças, perseguimos a verdade, aquela que os adultos escondem com medo.
Digo a vocês, como quem proclama uma verdade inútil: acreditei na cegonha. Até hoje vejo-a sobrevoando o quarto, levando-me no bico (isso não é trocadilho) e depositando-me na cama, naquele mês de novembro em que mãe me esperava na mais terrível solidão. Essa é uma verdade, foi a minha verdade, tristonha e perdida. Isso porque acreditei nela, acreditei sem nenhuma dúvida, até minha irmã me mostrar, com todas as cores, a fotografia de uma mulher parindo. Como livrar-me, portanto, da crença mais antiga e do desencanto mais cruel? Eu tinha dez anos e era estúpida demais. Aquele mundo de carne e sangue me assombrava, eu que preferia acreditar ter vindo da limpeza do ar, trazida por uma ave lírica.
Minha irmã, desde aquele dia, me dava as notícias do mundo. Mas eu acreditava era em mãe, e no almanaque sadol que nas suas páginas me mostrava uma cegonha perfeitinha, levando um bebê para alguém. Parecia-me cruel demais a natureza: nascer em meio a sangue, grito e dor. Isso era mais castigo que felicidade. Foi minha irmã também quem me disse como é que os bebês se formam, o que os pais fazem, etc. Não, não eu não queria saber, tudo devia ter muita dor, sangue e desespero. Por isso aos doze anos tive pena de uma noiva que assisti casando. Durante a cerimônia do casamento eu imaginei o quanto aquela criatura iria sofrer na noite de núpcias, que seria de muita dor e sangue. Libero a risada de quem está lendo. E assumo a total estupidez.
Assumo porque, volto a dizer, eu não entendia nada, absolutamente. Somente sentia. Sentia muita coisa. A natureza em mim não trazia decodificação, palavra: era vento batendo na pele, sensação, à revelia, de que eu era dolorosamente viva.


Imagem: infância. www.flickr.com

8 comentários:

M. disse...

Sempre muito lindo o que você escrever. Ah, e essa consciência da dor.

Gerana Damulakis disse...

Repito Mônica: sempre muito lindo tudo q vc escreve.

em.dor.fina disse...

Você imaginava o nascimento. Eu, quando criança, imaginava a morte. E pensava que, quando uma pessoa morria, era dobrada pelos parentes, como num show de contorcionismo, e colocada dentro daqueles grandes baldes pretos de lixo, feitos com borrachas de pneus. E o caminhão de lixo levava. Não havia sofrimento de nenhuma das partes. Nem de quem morria nem dos parentes. Os homens do lixo? Eles não sabiam o que ia dentro. Melhor se eu tivesse pensado que a cegonha levaria o corpo de volta. A infância, de fato, nos persegue.
Abraços, Aeronauta!

em.dor.fina disse...

É... Essa dor fina é o que, de fato, me inspira. Parece ironia dizer que estou feliz em voltar. Mas não é.
E seus textos, como sempre, cheio de grandezas e bonitezas.

Abraços!

Moniz Fiappo disse...

A vida vai nos mostrando as verdades da forma mais crua que existe.

Domingos da paixão disse...

Belissima postagem. Realmente a natureza é dolorosa. A vida se faz dessa maneira, é algo sofrivel e doloroso.

Anônimo disse...

Até quando não concordo contigo eu te admiro.

Nilson disse...

Não sei se acreditei em cegonha, mas compartilho desse sentimento de ter tentado defender o mundinho da infância. E confesso: julgava os adultos confusos demais!