segunda-feira, 11 de outubro de 2010

a Miserável


A quem era atacado pela tuberculose naquela época era exigido o mínimo de bom humor. Segundo Manuel Bandeira* a digníssima, "uma mulher meio romântica", "excessivamente magra, a boca muito vermelha de rouge", e que sempre aparecia tossindo, foi batizada pelos poetas de a Magra.
Num contraponto a essa distinta a Magra, que nome daríamos à dissimulada doença do nosso século?
A Gorda? A Obesa? A Bozenga? A Esticada? A Murcha? Que nome, gente, daríamos à Depressão? Não consigo ser engraçada nesse momento, e ainda tem o perigo de cair nas armadilhas do politicamente incorreto.
Diferentemente de a Magra, ela (a Depressão) não é nem um pouco romântica; muito pelo contrário: é em demasia pragmática, e lhe exige vida ativa a qualquer custo. Você amanhece indisposto, com vontade de curtir um dia sem trabalho, aí ela lhe joga no cocuruto a Culpa: primeiro e inocente vírus que lhe levará à Grande.
Culpa, culpa e mais culpa - é igual a tosse, tosse e mais tosse. Só que a Magra tinha boca vermelha de rouge, enquanto que a de cá nem boca tem, quanto mais vaidade. É algo disforme, mais pra monstro, com duas garras nas mãos, e que lhe abraça com gosto de morte. Morte consciente, que deve ser a pior das mortes. Você numa espécie de duplo lhe vendo morrer, pálido, sem sentidos: sem tato nem paladar e nem olfato.
Naquele tempo se as pessoas sabiam que você estava de namoro com a Magra, mesmo querendo distância de você com medo do contágio, pelo menos lhe aconselhavam a tomar os bons ares de Minas, quiçá da Europa; na pior das hipóteses lhe desenganavam da vida e desde então lhe tratavam a pão de ló. Com a Miserável de cá muito pelo contrário: lhe desenganam é da morte, e o que lhe dão como pretensa medicação é um tanque cheio de roupa suja para lavar.
Como legitimar a Miserável? Batizá-la com outro nome é o primeiro passo. Exige-se também que tal nome seja engraçado. Hei de encontrar humor em tempos tão severos. Hei de encontrar.



*In BANDEIRA, Manuel. Crônicas escolhidas 2. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 34-35.

Imagem: Medusa. In: www.google.com.br

Um comentário:

Gerana disse...

Xô para a miserável. O texto espantou a danada, porque, uma vez colocada em palavras, já é um sinal para que ela vá embora.