quarta-feira, 6 de outubro de 2010

a solidão


Sim, já tentei colecionar selos, também cartão postal, também papel de carta, também vinis de Caetano, também livros de Lispector, etc. Já tentei colecionar pedras, assim como a colecionadora de areia a que Italo Calvino se refere no seu belo livro de ensaios Coleção de Areia. Só que colecionar pedras dói bastante o corpo do vivente, ao carregá-la no lombo tal qual Sísifo extremamente cansado. Lembro de mim descendo as serras das Lavras Diamantinas, e extraindo de cada lugar uma pedra, a fim de depositá-la na velha mochila. Minhas costas sangravam, minha coluna se acabava, mas uma pedra dali eu tirava, levando-a para a minha coleção. O pior é que eu punha na pedra o nome, à caneta, do lugar de onde veio. Ou seja, eu profanava, com uma tinta azul, algo bastante natural, vindo do ar e da água daqueles lugares. O que eu queria com aquilo? Como sugeriu Calvino, será que eu queria reter os momentos passados ali, ou mesmo o lugar? Mas a pedra não trazia tudo, o habitat, o ar, o sol que caía nela, o vento. A pedra vinha só. Um belo ensinamento, pois, sobre a solidão. A pedra vinha só, mesmo acompanhada de várias outras pedrinhas que porventura eu trazia do mesmo local. Entretanto, o cheiro de lá estava nela, e eu cheirava, e lembrava. A sinestesia sempre me salvou como consolo do que nunca pude reter, aquilo em que a solidão põe suas garras feridas.
... Então certa época inventei de colecionar cabelos. Guardei um fio deles dentro de uma caixinha de lembranças. Trazia o cheiro de seu dono: cheiro de pedra, mormaço, vento, lavras. Mas numa tarde de muita raiva joguei-o no balde de lixo. Assim como na infância desisti dos selos, dos cartões postais, dos papéis de carta. E mais tarde abri mão de ter todos os vinis de Caetano e todos os livros de Lispector...
Para que tentar reter, reter, reter numa ordem inabalável, coisas e seres, se tudo apenas sobrevive de sua inteira e larga solidão?


Imagem: Cena do filme "Um dia muito especial"(1977), de Ettore Scola.

6 comentários:

Anônimo disse...

Colecione amigos e deixe-os soltos.

Bernardo Guimarães disse...

Lindo! Continue colecionando ideias e transformando-as em palavras para nós.
Seu fã nº 1

O Neto do Herculano disse...

Os vinis do Caetano (e muitos outros) ainda estão na sala, sozinhos. Acho que coleciono saudades.

Gerana Damulakis disse...

Lindíssimo! Vc é incrível, leio seus textos completamente vidrada de admiração.

Terráqueo disse...

Que bom que você não retem seus pensamentos.

Lidi disse...

O que eu queria dizer, Gerana disse. No mais, amo esse filme. E adoro essa dupla: Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Assisti, na semana passada: Ontem, hoje e amanhã, de Vittorio de Sica. Muito bom, também. Bjs