sábado, 22 de outubro de 2011

o cão


Dizem que no Renascimento a memória era representada pela figura de um cão. Um cão fiel e melancólico. É sabido que o destino desse cão sempre foi nos acompanhar, para sempre e até depois do fim, mesmo que não gostemos nem um pouco de cães. Nossa memória é uma raiz insepulta, fincada num chão móvel e, paradoxalmente, fixo. O que fazer dela? Os artistas sabem bem: desmaterializam-na em imagens,recriam-na, fazem dela o que foi e o que não foi possível um dia. De nós sobrevivemos, teimosos. Ainda hoje, por exemplo, sobrevivo de uma dor que senti no meio do pé, aos dois anos de idade, com a fisgada de um prego. Também de um sol queimando meu rosto em meio a um milharal: sinto o queimor na minha face, como se não houvesse cronologia possível no mundo. Como posso negar a visibilidade nítida das mãos de pai? Uns dedos longos, uma mão nervosa e suada, uma aliança grossa no dedo. E o cheiro forte de seus pés quando saíam, no final da tarde, de seus sapatos, num ritual cotidiano no mesmo canto da sala? A memória gruda principalmente nossos sentidos naquilo que perdemos, de fato. Mas, que bom, os cabelos anelados de mãe, antes das tinturas para fugirem dos fios brancos, ainda se movimentam nas minhas mãos, no também ritual do cata-piolho pago a alguns centavos. E, a despeito das indestrutíveis marcas na minha cara (aquilo que Augusto dos Anjos batizou de “a miséria anatômica da ruga”), meu rosto infantil pulula sobre o espelho, vencendo-o.
Oh, meu Deus, o que fazer desse cão fiel e perdigueiro, melancólico e teimoso, que não insiste em morrer?

6 comentários:

Naiana P. de Freitas disse...

Boa pergunta.Não tenho a resposta porque sou muitoooo apegada as minhas. Só não sem bem o que fazer com elas...Será que a imagem do cão tem haver com essa coisa chamada de fidelidade?-pois dizem que os cães são.
Abraços aeronauta!!!

Anônimo disse...

Aero, lembrar do que se foi e do que se fez é uma forma que o tempo encontrou para nos torturar ou nos acalentar. Torture-se menos, minha amiga, que a memória desses dias atuais lhe seja acalentadora como colo de mãe.
Um beijo e um abraço bem apertado.

M. disse...

Talvez tentar caminhar com ele seja a única alternativa. Saudades de você também, das nossas conversas ao telefone. Bjs.

Lidi disse...

Aero, como escreveu Ruy Espinheira Filho: a memória fica "para o bem ou para o mal". Concordo com Mônica, o jeito é caminhar com este cão, "mesmo que não gostemos nem um pouco de cães". Bjs

Adriano Alves disse...

"O homem é um ser para a morte". Assim leio suas memórias; assim sinto seus escritos.

Adriano Alves disse...

"O homem é um ser para a morte". Assim leio suas memórias; assim sinto seus escritos.

Obrigado.