Nasci amanhã, em plena
ditadura militar, acontecimento que não chegou ao conhecimento de mãe, e que
pai sabia por ouvir o rádio dizer. Nasci na madrugada, e cheguei com os pés na
frente, e não com a cabeça. Nasci no completo perigo, e foi mãe Isaura, parteira
do povoado, quem puxou minhas pernas e eu fui saindo de lá de dentro de mãe,
abrindo o berreiro para o mundo. Mãe conta que no alto-falante, naquela hora da
madrugada, dava para ouvir a música "índia seus cabelos nos ombros caídos,
lá, rá, lá, rá, lá". Na hora das dores, pai estava no bar jogando sinuca e
bebendo. E chegou bem na horinha em que eu nasci. Mais tarde ele soltou foguete
para comemorar minha vinda, e no chega-chega de tanta gente em casa,
providenciaram o "xarope de mulher parida", que todo mundo bebeu e
lambeu os beiços. Nasci sem qualquer cabelo, contrariando a música que tocava
no alto-falante. Com a carona achatada, uns fiozinhos loiros no cocuruto que
fizeram com que meu avô me chamasse de "gaza", nome horroroso, e que ele
melhorou para "gazinha". Não há nenhuma novidade no meu nascimento,
nenhuma. Quando nasci apenas o Brasil ruía com a ditadura militar e Caetano
cantava "alegria, alegria".
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6 comentários:
Aero,
"Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, num sol de quase dezembro"... Foi assim então que nasceu essa poetisa formidável, inspirada e ímpar no manuseio das palavras sempre belas e comoventes.
"Alegria, alegria" pra você, amiga, sempre e em todos os seus nascimentos.
Abraços,
Anônimo I
Obrigada, Anônimo I, por sua passagem sempre carinhosa por aqui. Gosto demais de sua amizade. Abraços.
Um nascimento num momento marcante, inesquecível.
Beijos,
É verdade, Tânia, momento da dureza da ditadura militar e a beleza do nascimento da Tropicália. Bjos
Parabéns querida Ângela!
Alguém especial como você, só poderia ter nascido em momento igualmente especial. Um momento de luta, força, beleza e muita arte. A você artista das palavras e dos sentimentos, toda a felicidade da aprendizagem diária, da sabedoria de experimentar a vida a cada momento e muita saúde para dar a nós, os presntes tão lindos que sua literatura produz. Um grande abraço!
Obrigada, Sandra, por sua amizade, sempre tão forte, tão acolhedora, vinda sempre também com palavras belas! Grande abraço!
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