terça-feira, 16 de outubro de 2007

Ah, o amor

Pego à toa na estante um livro de Roland Barthes, e vejo algo que ele anotou, entre parênteses, ao começar a falar sobre a poética experiência da fotografia: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". Está sublinhado a lápis por mim. O livro traz na folha de rosto, como sempre, o nome da proprietária (eu), e a data: 20.05.05. Páro aqui, hoje não vou além, apesar de ver que o livro está todo sublinhado com paixão. Essa frase, nesse momento, me captura totalmente. E volto a escrevê-la, como se murmurasse, falasse baixinho para eu não conseguir ouvir: "(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)". E me lembro que você vai viajar, e que eu vou ficar alguns dias sem remédio. Não foi isso que o psicólogo prescreveu?: "abstinência total de amor". E você me deixará sozinha em casa bem na hora em que se iniciará o tratamento, a análise propriamente dita. Golpes de pequenas solidões. "Abstinência de amor", o psicólogo vibrou com a armação do destino: "... na hora certa, você precisa disso, falta de amor total para poder se curar". Meu Deus. Abstinência de amor. Agora é que me dou conta da frase do psicólogo e dessa viagem sua, tão chata. Como sobreviver sem esse remédio que você tanto me dá, e que me fez adoecer na infância? Que me deixou a seqüela do chororô? Que me fez chorar até porque minha irmã rasgou a bandeira nacional no dia sete de setembro, em plena escola? Na minha cabeça ela ia ser presa por causa disso... E ela rasgava com gosto, a cada chorada minha, num sadismo engraçado. Ah, minha irmã de novo, que me ensinou o amor pelo avesso... Minha irmã que conhece o mundo desde menina, e que se habitou a viver nele como moradora incondicional. "Abstinência total de amor". E minha mãe, que pouco viajava, e quando o fazia era comigo ao seu lado, um aconchego tão grande, apesar de, verdade seja dita, nunca ter deixado de me beliscar no braço. Pai viajava muito, eu não gostava, o lucro era porque na volta, dentro de sua maleta de mão, vinha sempre um livro para mim. "Abstinência total de amor". Eu indo para o trabalho, sozinha. Eu voltando para casa, sozinha. Eu deitada no divã falando falando falando, e o psicólogo anotando anotando anotando... Já estou sentindo a presença de Kafka... E não posso chorar agora.

9 comentários:

Carlos Rafael Dias disse...

Querida Aeronauta,

Não é querendo te explorar não, mas suas postagens bem que poderiam ser diárias, ou quem sabe... horárias

Grande abraço e parabéns!

Luiza disse...

ah. eu concordo com o menino ai de cima.

Anônimo disse...

Aeronauta, suas postagens são balsamos para as nossas almas rasgadas pela realidade...
Gostei...
visitarei sempre.
Orlando/SP

Senhorita B. disse...

Querida Aeronauta,

Doses de amor para você!
Beijos,
Renata

Unknown disse...

Abstinência de amor é o mesmo que se amar mais um pouco, as vezes precisamos ser egoístas e aproveitar essas abstinências e cuidar mais de nós mesmos, nos amarmos mas nos conhecermos mais...

Domingos Barroso disse...

De fato,
Kafka não atura lágrimas.
Mas adora beber o sal.
Parabéns,
um abraço.

Vivz disse...

A gente até tenta, Nauta, mas qdo ele chega, não pede licença. Entra, abre a geladeira e põe os pés no sofá. Fogo esse amor.

aeronauta disse...

Oi, pessoal, estive a semana inteira viajando, por isso só hoje pude ler as mensagens de vocês. Adorei! Obrigada pelo carinho... Abraços a todos.

Lidi disse...

Que lindo!