quarta-feira, 21 de julho de 2010

lugares brancos


Nos consultórios médicos as atendentes trazem o cabelo sempre amarrado e um ar de quem sabe ver gente morrer: um semblante contumaz, cheio de pó de arroz, e um sorriso plácido. Irritantemente plácido. Andam de lá pra cá, chamando as pessoas, condenadas na sala de espera. Chamam tanto nome, menos o seu. E impressionante, seu médico nunca chega, seu médico sempre demora pra chegar, seu médico nunca é pontual. A sala é geladíssima, o ar condicionado no máximo. As letras nas paredes, sinalizando todas as salas de ultrassonagrafia, são vermelhas. Vermelhas no branco da placa. Há um não sei quê de pasmaceira naquilo tudo, e nem uma revista pra folhear. A televisão ligada tem uma imagem em preto e vermelho com grandes interrupções contínuas de chuvisco. E o médico não chega. Você vai ao balcão. A atendente de cabelo amarrado diz que ele está vindo, pegou um engarrafamento. Você volta pro seu lugar. Depois de horas e horas seu nome ecoa, límpido, gostoso de ouvir. Chegou sua vez! Uma atendente, plácida (devem ser assim as atendentes do céu), lhe leva corredor adentro. Você entra na sala. O médico lhe estende a mão. Manda você pra salinha do lado. Você tem que ficar nua. E lhe vestem uma roupa que precisa ser usada "com a abertura para a frente". Você deita e aguarda, enquanto o médico lá no outro compartimento lhe pergunta coisas. Você está nua, completamente, que coisa bizarra. O ar condionado no máximo. O médico finalmente chega e se senta ao seu lado, perto de um computador. Pergunta onde você nasceu, diz que a violência está em todo canto, no interior e na capital, que ter filhos é uma responsabilidade, que você tem displasia e cistos, mas não se preocupe, não há o que se preocupar; e que fique tranquila, seus ovários estão ótimos, pronto, não vai doer nada, é só relaxar. E lá vem um gel dos infernos, e um bip, bip soando perto do seu ouvido direito. Volta a dizer, compulsivo, que Salvador está violenta demais; aí você se preocupa, pois a noite já chegou e você tem que voltar pra casa, e se um ladrão Deus livre e guarde lhe esperar na esquina? Enquanto isso o médico vai lhe perscrutando, seu corpo agora é apenas anatomia naquela maca que dá nojo. E olhe que desde sua chegada você já sofreu o diabo, amassaram seus peitos naquela barra como se fossem cortá-los, e você deu um grito desesperado. Enfim, acabou, hora de se levantar e limpar a sujeirada do gel. Do lado da maca há rolos e rolos de um papel grosso, e você limpa com pressa, achando que está atrasando a próxima paciente. Você tem mania de pensar nos outros, e nem se limpa direito. E o médico, no outro compartimento, grita para você não se preocupar, pois o gel não mancha. Aí você veste a roupa com pressa, aquela nudez clínica lhe deprime. Então vai com gel mesmo, a roupa encharca, você continua com nojo de tudo. O ar condicionado é forte, e o médico já lhe espera com a mão no ar, lhe dá um sorriso profissional e diz de novo que não há motivos pra preocupação, e que aguarde, agora mesmo sairá o resultado. Você volta para a sala de espera, um monte de mulher sentada, mulher de todas as formas e idades, todas esperando sua vez. A porta de vidro é um fecha e abre, você olha as sandálias indo pra lá e pra cá, afinal o tempo precisa passar e, enquanto espera, você precisa distrair a falta de paciência. Depois de uma hora e meia lhe chamam no balcão, ai que alegria, lhe entregam seus exames, todos eles dentro de um saco plástico enorme, branco, com letras vermelhas, e você sai, feliz, rindo; e se questiona por que sempre sai feliz desses lugares, esquecendo-se imediatamente de todo o tempo e sofrimento que ali passou.



Imagem: Faculdade de Medicina de São Paulo, por pedro kok.
(www.flickr.com)

13 comentários:

Bernardo Guimarães disse...

imagine o que eu, médico ultrassonografista, que estende a mão, sorri satisfeito por dizer " não se preocupe, não é nada grave", que espalha gel, amassa os peitos procurando um mal que possa ser curado, olha por dentro a anatomia talvez invadida, que sofre com os congestionamentos e a violencia mas é sempre pontual, imagine pois, cara paciente, o que senti ao ler seu texto! e agora, o que faço??? rs...

aeronauta disse...

Ô, Bernardo, perdão. Sei que você é diferente, sinto que há alma em você. Mas é que os condicionamentos sociais são cruéis, e a impressão que passa nesses locais é que tudo é repetido, caricato e frio. Bjos.

Anônimo disse...

Amiga, você me fez lembrar de dezembro de 2007. Vá lá ver uma reedição de duas postagens que fiz sobre esses lugares brancos.

Não espere sua concisão, seu poder de síntese ao dizer "ar de quem sabe ver gente morrer".

Bj

Flamarion Silva disse...

Que situação, hein, Dr. Bernardo!
Sua resposta foi ótima, Ângela: "Sei que você é diferente, sinto que há alma em você."
Reze para não aparecer mais médicos...
Como sempre, sua "ficção" está ótima.
Beijo.

Muadiê Maria disse...

Replicante
Tenho ossos, e vísceras, e músculos,

e pele, e fios elétricos ligando

tudo isso.

Tenho sonhos, pesadelos, agonias,

brilhantes fantasias, momentos

de grandeza e pequenez,

e fios elétricos ligando

tudo isso.

Movimento rápido dos olhos,

a pulsação compulsória do

músculo cardíaco, sangue,

tempo, tempo, sangue,

e fios elétricos ligando

tudo isso.
Nilson Galvão

Moniz Fiappo disse...

Esses autômatos plastificados, que vêm a ser os médicos e as atendentes (desculpa Bernardo), tendem a ser cada vez mais frios e distantes. Dia virá que nem falarão com a gente. Tenho horror a consultórios, clínicas e que tais. Me sinto um verme.
O bom, afinal, é que não havia nada pra voce se preocupar.

- Luli Facciolla - disse...

Que bom que não sou a única a compartilhar desses sentimentos!
Adorei o post!

Beijo

Nilson disse...

Esse "ar de quem sabe ver gente morrer" é de fato um achado. O relato é preciso! Me senti no clima frio e sem alma da clínica, e concordo que não tem nada a ver com o nosso Dr. Bernardo! Engraçado como, bem lembrado por Martha, o texto que postei hoje dialoga com esse seu!

Gerana Damulakis disse...

Que talento para transformar tudo em literatura. É exatamente o sentimento de felicidade que experimentamos por constatar que ainda não estamos condenados que vc conseguiu colocar no papel, digo, na tela. Adorei.

M. disse...

Nossa, como eu sofri com você agora, como eu senti frio e nausea e, por fim, alívio. É bem assim mesmo. E sua literatura é libertadora.

Banho Veneno disse...

Esse “ai que alegria” todos nós falamos ao sair de um hospital. Nem sempre sabemos o motivo, provavelmente, nunca indagamos o porquê de sairmos felizes “desses lugares, esquecendo-se imediatamente de todo o tempo e sofrimento”. Este é o segredo do seu texto: a felicidade de se saber vivo depois de adentrar num recinto com cheiro de morte.

Anônimo disse...

Graças a Deus eu sou Homem!!
Bjs nautinha!

M. disse...

Tou com saudade de você. Queria conversar.