sábado, 31 de julho de 2010

noturno (II)


A noite naquele quarto sempre me traz sonhos profundamente verticais. Naquele, eu lia em voz alta, para o antigo e grande amor, Um lance de dados jamais abolirá o acaso, e ele no início ouvia atento, no meio se perdia olhando a rua, no fim pedia que eu parasse. E me dizia que deixasse para outro dia, não gostava de poesia de jeito nenhum, que eu desistisse. E eu notava seu cabelo esvoaçando, longe, bem longe de mim, cada vez mais longe, quando o vento soprava na sala. E a mesma e estranha sensação que tive, aos dois anos, de um sol vermelho no horizonte queimado, quando eu vinha da roça e sonhava em comer pão à noite. A mesma e estranha sensação ao chupar um bombom sentada numa pedra do quintal e depois me mudar para a casa nova na rua da ilha, uma casa grande, cheia de corredores. Sinéstica, eu era o abandono em suas diversas cores e perfumes. Fazia bonecos de milho e pedia à vizinha que lhes costurasse roupas, e espiava o casal de namorados da casa em frente, sentados agarrados em banco duro, ao relento. E naquela parte da casa que ninguém ia, nós brincávamos de família, repetindo tudo tudo que víamos. A mesma e estranha sensação de estar, contínuo viver, com a peneira entre as pernas, naquela brincadeira intensamente gostosa de passear pelo terreiro. E o abandono em sangue, no prego que entrou no meio do pé, e me deixou insone, ensinando-me como enfrentar a dor e o medo.
Nesse quarto largo e fundo aprendo a repetir o abandono; e os sonhos vêm, insistentes, entrelaçados num sumo forte, cheirando a coberta de retalho envelhecida, com manchas de umidade nas pontas.



Imagem: www.google.com.br

5 comentários:

Anônimo disse...

Absurdamente lindo. Só você para tornar o sofrimento algo belo de se ler.

O Neto do Herculano disse...

Não sei porque, insistimos em repetir o abandono.

Terráqueo disse...

Impressionante essa associação do abandono com uma colcha de retalhos que cheira e é úmida. Maravilhoso, como sempre.

Lívia N disse...

Quando li este texto só me veio uma idéia que sempre me procura quando te leio:Ângela está pronta!

Gerana Damulakis disse...

Chorik disse tudo: "Só vc para tornar o sofrimento algo belo de se ler". Perfeito.