segunda-feira, 29 de agosto de 2011

sobre Clarice e os calmantes


Estou lendo a biografia de Clarice escrita por Benjamin Moser. Desde ontem. E prestes a acabar. São setecentas e poucas páginas. Ando a engolir o livro. Vendo defeitos, mas gostando demais, sem conseguir largar. Tive que o deixar para ir dar aula, mas voltando para casa sei que não irei dormir enquanto não terminá-lo. É Clarice, a sempre Clarice, demoníaca, bruxa de minha vida, que tanto amo e tanto odeio. Já escrevi aqui sobre isso: sobre esse complexo sentimento que me une a ela. Nós duas, oh, nós duas, como somos parecidas. Ambas têm insônia, ambas tomam remédio para dormir, ambas são ansiosas, ambas se dividem entre o animal e o polido. Por isso a tentação grande que tive no passado de imitá-la; por isso a contínua imitação inconsciente, pois que há traços de sua escrita na minha percepção de mundo. Por isso esse agudo desespero de viver e não viver. Não tenho dela a genialidade, a beleza, a vaidade. Não tenho dela quase nada, só esse feitiço, essa coisa de perseguição. Quando me livrarei dessa mulher? Como destituí-la de ser o tal monstro sagrado? Afinal alguns textos seus não sobrevivem mais à minha leitura. Fico com raiva de alguns livros dela, tanta raiva. De outros, levo um susto. Como naquele em que ela fala dos comprimidinhos para dormir, os calmantes: nele estou eu, euzinha, devoradora de sonhos artificiais, gritando sem ouvir o próprio grito:

"Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então a outra pessoa punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando eu tomo calmante, eu não ouço o meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia." (In: "A maçã no escuro")

5 comentários:

Nilson disse...

Um texto assim, fabuloso. Não parece com o de Clarice, é seu. E é muito. Mas entendo o que você diz: o universo dela é algo feiticeiro, absorvente. Ave Clarice. Ave Aeronauta.

Lidi disse...

Aero, amo Clarice. Ganhei este livro de Moser, mas ainda não tive coragem de ler. Medo de ficar mais triste do que estou. Bjs

Naiana P. de Freitas disse...

Sou clariciana, faço o contrário leio Moser devagar para que o livro não acabe logo..gostei do texto.[de novo]rs..

aeronauta disse...

Nilson: palavras boas, sempre, as suas. Me fazem feliz.
Lidi: Leia o livro, ele vai lhe dar estupefação: Clarice é sempre surpreendente. Além do mais nos conforta saber da vida do outro.
Naiana: Obrigada pela visita. Volte sempre.

Sandra disse...

Salve Clarice!!!