terça-feira, 10 de julho de 2012

às vesperas


Não esquecer que eu existo é a minha condenação. Meu corpo funciona, acorda, vive. Até quando?
Desde que fui refém num assalto ao Banco do Brasil, vivo sabendo o que é estar às vésperas. Como as pessoas esquecem que, rápido como um trovão, a bala pode sair da metralhadora?
Nessa semana atravessei o mar no ferry boat. Já tinha feito isso duas outras vezes. Só que dessa vez foi diferente: eu olhava a todo instante para o rosto das pessoas esperando o momento da correria. Um novo titanic? Vivo assim, espantada, espreitando a hora.
Seja dentro de um ônibus, sentada na sala, dormindo na minha cama, Ela me olha. É alta, como só uma tia pode ser alta; é magra, com os ossos de fora. É bela, a desgramada.
Um dia, saindo da livraria Cultura, com as mãos cheias de filmes e livros, uma amiga querida me perguntou para quem eu iria deixar - quando chegasse a hora, como para todos chegam - para quem eu iria deixar aquele manancial de provisões espirituais.
Para quem eu irei deixar.
É uma tarde de terça-feira, e eu aqui, aqui sempre às vésperas.


Imagem: cena do filme "L'avventura" (1960), de Michelangelo Antonioni.

7 comentários:

Lidi disse...

Aero, certo dia, disse a Mayrant: "Daqui a uns dois anos, se eu ainda estiver viva, quero morar em Salvador". Ele ficou surpreso com a ressalva "se eu ainda estiver viva". A verdade é que também ando sempre com a sensação de "estar às vésperas". Talvez por já ter sido assaltada três vezes. Talvez. Bjs

Bípede Falante disse...

Aero, parece uma contradição, mas se a gente deixar esquecimento estaremos sendo generosas.
beijosss

M. disse...

Ei, amiga alada, perguntei pra você porque sempre penso nisso, pra quem irei deixar as minhas parcas coisas quando morrer: os meus livros de poesia, os meus filmes, os meus discos, o meu guarda-chuva azul, a minha coleção de lápis... Talvez pelo desejo de nunca morrer. Beijos e até amanhã.

aeronauta disse...

Gostei, amiga M., de você ter perguntado isso naquele dia, pois agora tenho pensado sobre os destinatários de meus pertences. Bjos

aeronauta disse...

Lidi: é verdade, um trauma desse nos deixa em estado de alerta.
Bípede: bem que gostaria,querida, de esquecer; seria um descanso. Bjos

Anônimo disse...

Vocês conseguem imaginar um defunto contrariado?
Serei eu se por acaso algum dia vier a morrer, coisa que acho muito pouco provável. Rs
E olha que tenho atravessado muitos mares!

Abraços,
Anônimo I

maray disse...

todo mundo, desde que nasce, sabe ( e se não sabe, deveria saber) que vai morrer. Não quero saber nem pensar no meu "quando". Só não quero que doa.