segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Conversando no divã (II)

Meu psicólogo me diz que preciso aprender a ser dura. Como???? Sou mole, manteiga derretida, como os vizinhos me chamavam na infância ao ouvirem, na rua, o eco do meu choro repetido o dia inteiro. É, sou uma manteiga derretida. Como aprender a endurecer mãos, coração, olhos?
"Comece a olhar a vida com dureza", foi o que ele enfatizou hoje pela manhã, e na hora entendi que ele lia minha alma e estava certo, mas que isso era tarefa impossível para mim. Vou ser manteiga derretida até o fim de meus dias. Mãe me contou que eu, recém-nascida, lasquei os cantos da boca de tanto chorar. E lembro bem que passei toda a minha infância chorando, me esgoelando para o mundo e para a rua toda ouvir. Sei lá por que chorava, sei que chorava. Na adolescência chorava também, não me esgoelando, claro, mas chorando quietinha no meu canto, com meus livros de Clarice no colo. Depois, adulta, as lágrimas continuaram insistindo na moradia boa de meus olhos. Agora, mais adulta ainda, continuo a mesma manteiga derretida, apelidozinho que eu odiava quando era criança. O pior é que ele, o psicólogo, está certo: preciso aprender essa lição da dureza. Por onde começo? Acho que por ele mesmo. Não estou mais nessa de achar que psicólogo precisa ter afeto por seu paciente. Chego lá, choro choro choro, ele me dá lencinhos de papel e busca comigo encontrar o labirinto, sem pegar na minha mão. É melhor assim, o labirinto é meu, tenho que ir sozinha, ele só precisa me ajudar profissionalmente. Pronto, eis uma palavra dura: "profissionalmente" - palavra longa, fria, parece escritório, secretária fardada atendendo ao telefone e um sonzinho de fax ao fundo. Eis, pois, o mundo. Ele é o mestre, diz isso ao meu coração: "veja, o mundo é um escritório kafkiano onde você está envolvida num terrível processo. Mas é possível sair de lá. Porém, só será possível mesmo se você enxergar, ver, viver esse escritório, e, pior ainda (ou melhor ainda), viver a condição de ser o inseto kafkiano."

8 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, e esclarecedor.

Anônimo disse...

Como vc escreve bem, minha cara. Vou cobrar sempre um livro de remembranças. Abr. Carlos

Carlos Rafael Dias disse...

Vou poupar o elogio desta vez, para não parecer que sou piegas ou pérfido. Mas, depois de ler as novas do seu blog, a vontade de comentar é irresistível. Dá pra perceber,também, que tenho um coração-margarina...

Vivz disse...

Eu tb choro tanto, Nauta. Na mesma intensidade de qdo era pequena, só não com a mesma histeria. E também me esforço para ver a vida com dureza. Até a vejo, quando sou apenas expectadora. Porém, como Personagem é muito difícil. Bjs.

Anônimo disse...

Quase chorei lendo seu texto não gosto de ver mulher chorar!

Kátia Borges disse...

Mais que chorar muito, eu ainda gosto de chorar. Me sinto aliviada após uma enxurrada de lágrimas. Choro até com propaganda de manteiga.

chumani disse...

"Comece a olhar a vida com dureza" confesso que acho este conselho muito estranho

Lidi disse...

Você deve estar achando estranho eu comentar este post depois de quase dois anos que foi publicado. Mas é que só agora estou acessando teu blog. Li o que você postou recentemente e adorei, então, resolvi ler teu blog do início. Coloquei na tua primeira postagem e fui lendo, fui lendo, gostando, adorando, me encantando com teus escritos e, quando cheguei aqui neste post, não resisti, precisei comentar, dizer que você escreve divinamente. O blog é maravilhoso. Virei sempre aqui agora! Um beijo e parabéns! Vou continuar por aqui, lendo...