sábado, 28 de fevereiro de 2009

Todos os abismos


É "um homem sem abismos". Assim Silviano batizou Florêncio, personagem quase vegetal de "O Amanuense Belmiro" (Cyro dos Anjos). Desde a primeira vez em que li o livro essa expressão bateu fundo. Já conheci muitos homens sem abismos. Muitos. E o pior é que alguns foram quase íntimos. Quase namorados, eu confessaria, vermelha de vergonha. O que são homens sem abismos? No melhor estilo florenciano eu diria que são homens que enchem a pança de cerveja até arredondá-la, sem um piscar sequer de complexidade existencial, de filosofia humana. Homens chão a chão, terra a terra, corpo a corpo, nada dostoievskianos. Algumas mulheres dizem que são os melhores, outras se queixam de que os ditos cujos nunca têm asas e estão sempre rindo. A minha queixa é mais profunda. Um que eu conheci, há muito tempo atrás, tão bonito, ficava só alisando os meus cabelos, os meus longos cabelos. Certa feita, ao alisá-los, disse: "Menina, você tem cabelos... para duas cabeças!"
Isso aconteceu bem na minha fase mais chatíssimamente clariceana, e dei vontades de cuspir na sua cara. Oh, onde encontrar um Hamlet? Era o que meu coração de vinte anos perguntava ao Mundo. O Mundo me respondia de maneira cifrada (tão cifrada que nunca entendi direito). Enquanto isso fui enlouquecendo águas afora, morrendo sempre afogada e cantalorando, a imitar descaradamente Ofélia.


Imagem: "Sem título" por diadainconsupertrafra.
(www.flickr.com)

8 comentários:

Anônimo disse...

Bem, ao que tudo indica, a outra cabeça a merecer seus cabelos não era a desse pobre rapaz desabismado. Um rapaz sem possibilidades de pontes. Sem ao menos ecos a oferecer. E lembre-se que nem todo passarinho é pardal. Abr. (carlos)

Anônimo disse...

Eu tive a sorte de encontrar um homem com abismos e com habilidades para mergulhar nos meus. Beijos

aeronauta disse...

Puxa vida, esses dois comentários me deixaram sem ar... Ótimos!

Anônimo disse...

E nós nem combinamos, hein?

Marta F. disse...

Acho que encontrei um desses, não pro meu martírio...o pior é não contar com as asas e o "sempre rindo", com cerveja na mão, é assim mesmo como descreveste.
Mas como disse não é de todo martírio, há compensações(não financeiras, claro)...tô tirando de letra, na esportiva, enquanto for prazer.

Gosto muito dos seus escritos.

Senhorita B. disse...

Algumas pessoas sem abismos podem ser adoráveis. Tenho amigas assim. Mas os homens sem abismos, em geral, são insuportáveis. Entendo o seu horror.
Bjs

Janaina Amado disse...

Bom, eu, que sinto um abismo bem aqui do meu lado, como já escrevi, em geral fico desconfortável em platitudes - mas elas me fazem falta, pois também preciso delas. Mas não aos 20 anos, rs. Lindo texto, aero. Adoro o Ciro dos Anjos.

Anônimo disse...

Aeronauta vim aqui por sugestao da rainha Guilhermina,depois de uma conversa nossa sobre pessoas mosquitos (aquelas que vivem na superficie...).AI ela me falou do seu texto que eu iria apreciar .Tao sabia a querida !realmente amei ,estou a procura de um homem com abismos..bjs