terça-feira, 24 de novembro de 2009

Inútil


O mundo celestial é perversamente silencioso. Olhamos para os santos nos altares e eles nos devolvem o olhar, inertes. Os anjos dão suas gargalhadas, acredito, mas essas não ecoam no lado de cá. Existe uma parede forrada que nos separa do mundo angelical, dos seus burburinhos, de suas festas; que nos separa dos mistérios e possíveis alegrias do mundo divino. Aqui ele é mudo, perversamente mudo. Tento entoar ladainhas, mantras, música clássica, mas me vejo fazendo espetáculo morto, para mim mesma, numa espécie de arremedo ridículo do que sou. Ai, como extrair de dentro de mim o silêncio bendito, contrito, extraordinário... Não, não há solução. Olho para todos os santos e eles me olham, parados. Meu espírito deve ser um fio cortado; como estabelecer conexão com esse silêncio tão bem pensado... por Deus?
Aguardo a resposta. Minha fé é grosseira, espessa, pronta para polimento. Mas eu não tenho esses instrumentos de ponta, próprios para refinar matéria em estado bruto. Aliás, verdade seja dita, eu não tenho nada. Na minha casa, que não é minha, meu corpo é a única testemunha: dorme, come, lê, e, com o tédio mais dilacerado do mundo, chama por Deus numa língua vã, cheia de sons, inútil.


Imagem: "Anjo da colina", por Thiago Nehring.
(www.flickr.com)

5 comentários:

Anônimo disse...

Texto tão bonito. Beijos. Mônica Menezes

Gerana Damulakis disse...

Nossa, vc tá q tá: inspiração "borbulhante" (para usar de novo uma palavra que acabei de usar, mas vale para vc também).
Texto forte e com um sentimento igualmente forte. Parabéns, de novo, sempre!

Flamarion Silva disse...

Os santos acreditavam em mim quando eu era criança. E eu acreditava que eles me viam, me ouviam e me ajudavam. Mas alguns eram perversos e me assustavam: O Senhor Morto, O Senhor dos Passos. Hoje acho que eles morreram, ou então minha fé se tornou pouca no meio da vida. Mais tarde talvez eles voltem e me estendam a mão.
Quem sabe desses mistérios?...

Gosto muito dos seus textos, Aeronauta, eles me fazem viajar.
Abraço.

Nílson disse...

Tá demais, mesmo. Grandes textos, sempre. Quanto a essa busca, acho que o mundo seria menos complicado se todo mundo fosse honesto como vc está sendo. Mas preferem ser crentes, ou não. Afirmar sem saber ao certo, e aí até matar por isso. Fiz um poema a esse respeito.

Moniz Fiappo disse...

Grande reflexão. Texto maravilhoso, como sempre. E olhe que este tema é complicado, mas voce escreve com a alma.