quinta-feira, 10 de junho de 2010

amor


Sei apenas que meu amor é grande. Dissolve-me e a tudo que tenho. Roupas desaparecem, cabelos se esvoaçam, mundo se derrete. O amor me abstrai da solidez: não me sustento no chão, deito-me nele, aderindo-me à sua pele. E sua pele é de ar, algo físico, incontestável força de existir.
Aos onze anos vi o amor assim: quem não o captou foi um menino amarelo que se sentava ao meu lado na escola e ganhava seu tempo fazendo bolas concretas de uma massa marrom que saía de seu nariz. Trazia catarros infinitos na garganta e uma tosse grandiosa, que o ajudava a se distrair de mim.
Oh, para que essa insistência em amar, minha avó pergunta, rindo desse mundo besta que ela conhece há mais de oitenta anos. Por isso pede para, ao morrer, lhe enterrarem em qualquer lugar, "numa capoeira dessas", no meio da floresta.
Selvagem, venho de uma raiz selvagem.
No entanto, sei das delicadezas do amor.
E são tantas: rendas que se tecem com os dedos.
De preferência em nuvens invisíveis, onde a alma repousa.
Ah, e aquele outro menino de cabelo liso partido de lado? Achava-o lindo, porém ele amava uma certa Ilma, que nunca seria Vilma, e ainda fez questão de escrever esse nome, pedaço aleijado do meu, num caderno público do colégio. Para que tanta fuga, menino antigo? Passou o ano dois mil, e te esqueci na espera longa dos anos oitenta. Meu cabelo não tem mais trança, meus vestidos não têm babado, e a conga que usava deixei debaixo da cama.
Mãe me contou, certa vez, que teve um namorado com um apelido esquisito: "Véio". Disse-me que guardou, muitos anos, seu retrato. Ao me contar isso, seu tom de voz
era diferente, cálido, pérpetuo. Esse tom foi rápido, perdeu-se no momento em que foi pronunciado. Nunca mais soube de nada.
O que continuo sabendo, com uma insistência plácida, é que amo.
Amo com a teimosia de quem vai morrer e não consegue fechar os olhos.



Imagem: "Ao relento...", por danaduraes.
(www.flickr.com)

8 comentários:

Bernardo Guimarães disse...

seus textos me trazem uma alegria enorme, por suas memórias tão parecedas com as minhas...

Gerana Damulakis disse...

Simplesmente o máximo.Qualquer palavra a mais, ainda assim não completaria o que penso do seu texto.

Edu O. disse...

o texto por si só já é maravilhoso, mas junto com a imagem nos dá uma leitura atordoante sobre o amor. E tem tanta nuance, tanta sutileza em algumas passagens.

Terráqueo disse...

Adorei o teu texto como sempre. Incrível, hoje mesmo escrevi sobre essa dissolução do amor. Parabéns.

Flamarion Silva disse...

"Oh, para que essa insistência em amar?"
Esta pergunta de sua avó traz um rastro de vida e muitos outros questionamentos.
Abraço.

Anônimo disse...

Lindo. Seu amor é de fato imenso.

Meu apelido na escola era salame. Agora me diz, que menina ia querer namorar com o salame?

Nilson disse...

Grande, maravilhoso texto como sempre. E olhe que fala do amor, o tema dos temas, e consegue dar um ângulo novo. E Ilma pedaço de Vilma é um achado! O texto me lembrou Tom Zé: o amor é velho!

Lidi disse...

"Amo com a teimosia de quem vai morrer e não consegue fechar os olhos." Lindíssimo, Aero. Quando eu crescer, quero escrever como você. Um beijo.