domingo, 27 de junho de 2010

em preto e branco


Sonhei ontem que eu voltava para casa, para o passado, mais precisamente para a década de 80. Minha cidade surge em preto e branco, e eu visito cada ponto e coisas que vivi e presenciei. A cena mais engraçada foi aquela tão repetida, em que mãe buscava minha irmã de casa em casa, de porta em porta, para lhe dar uma surra. Noto que ela insiste em pegá-la com a boca na botija, ou seja, com o namorado inaceitável. De lado, perto de um poste, revejo mãe praguejando, com um cinto na mão, gritando, querendo saber onde a "infelizinha" tinha se escondido. Mas o que eu quero mesmo rever ali sou eu aos quinze anos, usando aquele vestido azul na procissão do Divino Espírito Santo. Ou encarar meu rosto de dezoito, em busca de alguma marca que já anunciasse o que seria minha face aos quarenta. Em outro momento passeio pela praça e vejo moradores que já morreram, naquele afã inútil de cuidar do passado, enquanto só eu venho do futuro, dois mil e dez soando apenas para mim, nos meus pés e ouvidos. Tem uma hora em que quero dizer isso a um senhor distinto, morto ainda na década de 80; mas meu corpo rodopia, rodopia e eu me calo, etérea, vendo aquele senhor sóbrio jogar baralho, tão sossegado sem saber da morte próxima. Percebo também que a rua da glória é estreita, que Dona Clotildes está na porta e eu posso agora matar as saudades de nossas prosas. Ah, quanta gente morta voltando! Comícios, senhoras hoje velhas ainda moças, falando ao microfone na praça, outras aplaudindo. Algumas que são hoje moças, ainda crianças, de pijama. Todos lá, como num filme, e eu assistindo, analisando profundamente como tudo era antes, bem antes dos meus trinta anos. Em certos momentos me acho tão desajeitada aos dezessete, tão gorda aos quatorze, tão boba aos dezenove. E o ar traz uma atmosfera lírica, e pai ri às gargalhadas num carro alegórico, e mãe com suas sandálias novas, de usar em festas, arruma o cabelo que o vento toca sem delicadeza. É um frenesi onírico, cachorros latindo pelas portas, e eu, a que sou hoje, olhando tudo isso às claras, extremamente curiosa com aquela vida terminada.


Imagem: "Rosa em preto e branco", por Luis Condessa.
(www.flickr.com)

9 comentários:

Gerana Damulakis disse...

aero: este é o começo do livro que imagino que vc escreverá.
Incrível, minha amiga, vc é uma verdadeira escritora.

Adorei reencontrar D. Clotildes. Lembra o quanto ficou marcada a imagem dela depois que li seu texto?

aeronauta disse...

Oi, Gerana, obrigada, e a dica para começo do livro é boa.
Lembro sim o quanto a imagem de Dona Clotildes - pessoa tão querida - lhe marcou. Ela é marcante mesmo, até apenas passando por um texto. Grande abraço.

Anônimo disse...

Você é antes de tudo uma grande observadora da vida, uma historiadora do que houve e daquilo que poderia ter acontecido, do que foi, ainda é e jamais teria sido.

Bernardo Guimarães disse...

todos somos desajeitados aos 17, gordos ou extremamente magros aos 14 e bobos aos 19, mas só sua sensibilidade em escrever nos mostra. imagine, querida amiga, o caco que é estar com 57!!!

Bípede Falante disse...

Aero, vejo-me tanto nos seus escritos :)

- Luli Facciolla - disse...

Viagem boa!
Adoro vir aqui e viajar!

Beijo

Menina da Ilha disse...

Que bom que realizou o seu desejo pelo menos em sonho. Lhe ver em todas essas fases significativas com o olhar de hoje, não deve ser um sonho comum. Concordo com Gerana sobre o livro. Já lhe disse isso mil vezes. Bjos.

Muadiê Maria disse...

muito bom ler vc, muito bom...

Muadiê Maria disse...

muito bom ler vc, muito bom...