sexta-feira, 25 de junho de 2010

a verdade


Meu amigo, me perdoe, não tenho mais vocação para fingimento.
Fingi morrer uma vez, e a casa toda se encheu de gente.
Fingi amar com esmero, e os palácios caíram inteiros.
Hoje busco a verdade. E, como Édipo, furo os olhos.
Estou cega, completamente. Ando reta, em curva perigosa.
Sei para onde vou, e lá não tem nada. Não tem nada, é o que sinto.
Nem Antígona como filha, para me levar.
Mas isso aqui não é um lamento. É um canto. Sem qualquer melodia.
São dois dedos de prosa, sem nenhum encanto.
Meu amigo, me perdoe, não tenho mais dons para fingimento.
Mostro a ti o que sou, o que também poderei ser.
Não finjas que não me vês, que não me ouves, e que eu não existo.
Estou à sua frente, cega, intensa, e me visto
com a mais transparente das roupas, bordada com ostras vagas.
Os meus dois olhos furados não assustam.
Chegue mais perto, aproxime-se.



Imagem: "Cegueira", por stupidbeea.
(www.flickr.com)

5 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Não é a justiça a cega, é a verdade.
Belo poema, aero, muito belo.

Anônimo disse...

Minha amiga, eu que te peço perdão por não poder presenteá-la com poemas como esse.

Bípede Falante disse...

Fabuloso.
De uma entrega à prova de olhos e de julgamento.
Adorei :)

Anônimo disse...

Para bom entendedor... Mas só para os bons, os outros.. bom... preferem estar em seus devaneios, com os olhos abertos, mas sem nada enxergar... Esses preferem fugir, uma fuga intensa, eterna, sem rumo. Esses são adeptos de uma vida criada, montada em seus mínimos detalhes. Mas essa vida somente não basta... Há que se colocar os pés no chão, uma hora, um momento qualquer que seja. É preciso ter coragem de ser cego para poder ver!
(João Neto)

Moniz Fiappo disse...

Belíssimo poema, Aero. Tocou-me profundamente.