domingo, 29 de agosto de 2010

predestinação


Nunca me esqueci do cheiro de seus cabelos; um cheiro de mato, de vento, de areia. Nem da maciez deles, no toque inteiro do meu nariz. Nem do abraço que encaixava meu corpo no seu, minha boca tão perto, sem precisar eu suspender os pés. Tudo tão certo, predestinado, assinado por Deus.
Nunca me esqueci de suas mãos repletas de veias, verdes, saltando; seus dedos rústicos e ternos, a pele vermelha de seu pescoço. Áspera barba, entregue ao tempo dos mais eternos, indelével árvore, raiz suspensa no rosto. Costas largas, amparadas por um tronco primevo, gênese das coisas.
Como esquecer os traços mínimos de sua face? Perto da boca um laivo melancólico, nos olhos rastros de antigo reflexo: mar nas encostas. Tudo ali era meu, tinha conexão com minha face, com meu rio morrendo sem pressa.
Portanto, tudo era tão certo, predestinado, assinado por Deus. Deus, poeta idiossincrático, arquiteto vulnerável, fingidor, como todos os outros.


Imagem:Natureza wallpaper. In: www.google.com.br

5 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Uau! Fiquei, como vc sabe, arrepiada: Deus como um fingidor, como todo poeta, isso é de arrepiar.

Flamarion Silva disse...

Qualquer coisa que eu diga não traduz o que sinto ao ler este texto. Apenas tento, assim pelas margens, compreender a força poética desse rio caudaloso.
Beijo, Ângela.

Centelhas do outro disse...

Que simbiose maravilhosa, a construção dessa personagem homem/natureza, que você criou. Lembrei-me de meu pai, ele era bem assim.
Vou escrever algo aqui e não me repetirei mais, para não ficar chato: você é uma escritora perfeita.
Queria dizer mais coisas, mas hoje acordei muito vazio.
Abraço.

Flamarion Silva disse...

Oi, Ângela.
Invejo quem sabe administrar seu tempo e escreve. Eu até que tenho tempo, mas sempre breves intervalos, e, para escrever, preciso de tempo largo. Sou muito família e ela está em primeiro lugar. Quem sabe um dia não ganho dinheiro com literatura...
Mas vou publicar algo lá no meu blog.
Por enquanto fico lendo a excelente escritora Ângela Vilma.
Beijo.

gláucia lemos disse...

Fingidor, como todos os outros... ninguém é verdadeiro, nem Deus. Isso é muito grave. De uma profundidade existencial que assusta. Ou de uma realidade que a gente não quer?