sexta-feira, 1 de outubro de 2010

exposição


Não consigo entender uma arte que não nasce da carne, da profunda dilaceração da carne, da ferida, da dor da ferida exposta, das moscas sentando em cima. Se a arte não nascer disso, é decoração, é paisagem amorfa, é epifania barata, é bordado. Camus, aqui perto, sopra no meu ouvido: "... a obra de arte deve servir-se, em primeiro lugar, dessas forças obscuras da alma". Não quero cantar roda não, menina, quero mostrar minha ferida exposta. E não é apologia ao sofrimento, é o próprio sofrimento, exposto. Quer ver? Esqueça então um pouco o seu bordado no bastidor e venha cá. Você já teve uma ferida dessa? Oh, não? Então terá, aguarde, é uma questão de tempo. E se tiver, não tente tampá-la com um mero bandeide. Deixe-a exposta ao sol da manhã. Deixe o sol cair na sua ferida, deixe-a doer, não fuja da dor. Para que, menina, vestir uma calça comprida a fim de esconder as perebas de sua perna? Não gosta da palavra "pereba"? Oh, deixe de ser decoradora de exteriores. Pois que a vida talvez seja só um grande salão interno, profundamente interno, amplo, branco, vazio; e nós, aristocratas vivendo nela, acreditamos triunfar com móveis caros.


Imagem: "Vazio". IN: www.google.com.br

8 comentários:

Bípede Falante disse...

aero, eu também não consigo, mas sei de escritores que levam os textos com tanto controle e planejamento e felicidade que nem sei como conseguem escrever.

Bernardo Guimarães disse...

PÔXA!
estou de volta...

Gerana Damulakis disse...

Grande metáfora a do salão.

M. disse...

Só você mesma. Incrível. Bjs.

Anônimo disse...

Existe uma arte que nasce do amor. É a mais bela arte, Aero. É a vida. É mister, entretanto, deixar esse imenso salão interno e olhar para fora, para além dos muros, para onde está o outro. É da nossa capacidade de amar que vem a cicatrização das nossas feridas. Nunca perca essa sua imensa capacidade de amar. É dela que vem a beleza da sua arte, não da dor.

aeronauta disse...

Oi, Chorik, a exposição da dor, acredito, é um ato de amor. Um abraço.

Caio Rudá de Oliveira disse...

Não se se concordo ou discordo, mas admirei a postagem, fato.

Marcantonio disse...

Muito bom. E concordo com você. Há diferentes camadas das quais se retira o material da arte; uma superficial, inclusive, usada na decoração de EXTERIORES, como você anotou de maneira sagaz. Mas a verdadeira arte, aquela que toca fundo no espírito, vem lá das camadas profundas onde estão a dor e as contradições da vida> E a satisfação que se alcança ao fazê-la, ou mesmo em fruí-la, não é da natureza da alegria fácil, mas vem do regozijo em se atingir um certo tipo de compreensão ou percepção transfiguradora.
Se fôssemos imortais, felizes, perfeitos e coerentes, não faríamos arte; ou, se a fizéssemos, não raro a largaríamos como bordados inacabados com os quais não valeria perder tempo. Nos dedicaríamos apenas a comer ambrosia e a sorver néctar.

Um abraço.