terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"semper parata"


Aos seis anos fui fadinha, designação para o primeiro patamar do bandeirantismo. (Sim, fui bandeirante dos seis aos catorze anos.) E como às fadinhas só era destinado o "trabalho" de brincar de boneca, eis que numa tarde de sol brincava de boneca no casarão das bandeirantes. Os brinquedos pertenciam à associação. O que eu não sabia era que aquela boneca em especial tinha dona: uma menina rica da cidade grande que a emprestou para a casa, na sua estação de férias no interior. Só soube disso depois que, sem querer, quebrei, num carinho exagerado, a cabeça da boneca. Todos os adultos que ali estavam, gritaram em uníssono: "A boneca de Fulana!" Um constrangimento doloroso marcou o ambiente, e eu senti, pela primeira vez, que havia cometido um erro, um grave erro. Fui tomada por um acesso de remorso, espécie de peso que me acompanhou dias e dias. Mesmo chorando aquilo não passava. O que a menina rica da cidade grande iria pensar de mim, eu que quebrei sua linda boneca? Até hoje esse sentimento de fatalidade, como consequência dos exageros de minha ternura diante do que não é meu e nunca será, me acompanha. Continuo quebrando, por causa de meu excesso de amor, as coisas alheias. E, ao quebrar, o formigamento no juízo continua me perseguindo, com a imagem de todos aqueles olhos e bocas me denunciando: "Oh, a boneca de Fulana!"
Eta eco maldito que me faz pedir perdão mil vezes ao mundo, sem qualquer chance de absolvição.


Imagem: símbolo do bandeirantismo."Semper parata", lema das bandeirantes, significa "estar sempre preparada".

2 comentários:

Lidi disse...

Por isto, gostei tanto do livro "Três infâncias" de Mayrant Gallo: as pessoas tendem a achar que na infância tudo é fantasia, tudo é lúdico, quando sabemos que não é bem assim. Ainda crianças passamos por aqueles momentos epifânicos que nos ensinam a lição de que a existência é cheia de faltas, de fracassos, de dores, e que levamos para o resto da vida. Mas até que é bom, pois cedo aprendemos a necessidade de ser/estar "semper paratas", mesmo que nem sempre isso seja, de fato, possível. Ângela, eu já disse aqui e repito: as suas memórias precisam ser publicadas em livro. São maravilhosas. Bjs

Naiana P. de Freitas disse...

Eu que digo, adorei conhecê-la, mil vezes!!!...aguardo o autógrafo!!,
sucesso! paz! saúde! e muita produção para o aeronauta em 2012!!

abraços apertados!!