Vida literária é uma das atividades sociais que mais me chama a atenção. Se é bom ter vida literária? Sinceramente, sim; é divertido; é onde de mais perto podemos conversar, com os chamados "seres afins", assuntos de interesse "transcendentemente literários". Sinceramente, não; é onde farejamos, de mais perto, o que se chama estupidez humana; é onde vislumbramos de pertinho as chamadas "panelas", adulações; é onde entendemos como funciona a anatomia dos concursos literários, das academias, dos achincalhes, etc e tal. Se há podridão humana e humorística é na vida literária.
Terminei de ler agora o "Nelson Rodrigues por ele mesmo" (Org. Sonia Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012) e esse assunto, que já estava rondando a minha cabeça há um tempo, eclodiu ao término do livro. Olhem só que interessante o que Nelson Rodrigues diz:
"Bote um retrato de Che Guevara na parede de casa, e o retrato abrirá todas as portas da vida literária".
Nessa frase eu me autoanaliso e tento reconstituir como algumas portas da vida literária foram abertas para mim, seja nas primeiras incursões em semanas de arte na Chapada Diamantina, seja nos lançamentos de livros e vernissages em Feira de Santana, e nos convites tipo bate papo com escritor emergente em Salvador. Como se deu tudo isso? Talvez ajudou bastante um certo quê de poetisa da roça que tenho, algo meio exótico; uma menina tímida com a cabeleira assanhada, saída lá das brenhas dos garimpos de Andaraí e que foi estudar Letras na Uefs com o livrinho amarelo, publicado, dentro da mochila. Um dos veteranos da vida literária feirense percebeu talento em minha escrita incipiente e foi me abrindo portas. Através dessas portas abertas conheci gente, muita gente, participei de antologias, até resultei membro da comissão de publicação do MAC, em Feira. Daí para chegar em Salvador foi um pulo. E eis que me vi, depois de alguns anos evidentemente, dentro da vida literária soteropolitana. Não com o jeito família de Feira de Santana, claro, mas com algumas oportunidades de aparecer. Cheguei ao desplante de dizer não a uma participação de destaque numa Bienal em Salvador, vejam só. Tudo isso em decorrência de uma profunda timidez e de minha falta de adequação ao ambiente riquíssimo que é a vida literária.
Mas voltemos a Nelson, agora ouvindo-o falar de um vencedor perpétuo de prêmios literários, seu conhecido:
"(...), o único defeito que acho dele, cuja obra conheço toda, é que tira todos os prêmios, tudo o que escreve é premiado automaticamente. Ele é um premiado nato e hereditário.(...)"
Engraçado esse Nelson Rodrigues. Seu humor é sempre muito, muito dramático. Por que chega a ser dramático o perpétuo ganhador de prêmios literários. Será que digo isso por puro ressentimento? Por nunca ter conseguido ganhar um premiozinho literário sequer? Nem na minha cidade ganhei um primeiro lugar num concurso de poesia. Aliás, lá é que não ganharia mesmo. Mas voltemos. Esse assunto é bom, e muito me intriga. Aquela velha pergunta inquietante :"o que faz um escritor ganhar diversos prêmios literários na sua província?"
Já participei de bastidores de concursos e poderia ter uma resposta aberta e sincera, fosse eu um Nelson Rodrigues de saia. Infelizmente não sou. Sou pusilânime. O próprio Nelson me absolve com relação a isso:
"A pusilanimidade é um problema de cada um de nós. Infelizmente, vivemos sob esse signo, principalmente os intelectuais brasileiros. Falamos mal e falamos bem por pusilanimidade, por pusilanimidade enaltecemos. (...) Falta-nos bravura para romper com esse circo fatal, terrível."
No meu caso, não falo bem de certo alguém, mas não tenho coragem de falar mal abertamente. Portanto, sou pusilânime. Como uma autêntica escorpiana com ascendente em libra, corro de confusão. Mas ao não falar bem do talento unânime (ah, a unanimidade...), me resta um pouco de coragem, não é mesmo? Ao falar nas entrelinhas, ao tentar encontrar o caminho do meio que é a sutileza, me resta um pouco de coragem.
Certa vez, ao ser membro da comissão julgadora de um concurso literário, tentei impedir que com o meu voto ganhasse uma péssima e bestial obra de um autor considerado "grande talento". Tudo em vão, pois o tal ganhou mais um. Para isso também serve a propagada vida literária: para que uma obra, de tão lida e debatida em saraus literários, seja imediatamente conhecida (e reconhecida). Mesmo sob pseudônimo, o tal nome berra, por que seu estilo, sua obra são conhecidos. Se esse fulano não escreve tão mal, tem uma certa correição sintática e algumas metáforas leves, então é ele quem, de novo, vai ganhar mais um prêmio. Dessa maneira, portanto, nascem alguns gênios municipais, estaduais e federais. Óbvio, o que audaciosamente insinuo aqui não diz absolutamente nada a respeito dos escritores legítimos que ganham concursos. Diz apenas dos falsos talentos que sabem se inserir com bastante desenvoltura e familiaridade na chamada vida literária. Donos de uma escrita uniforme, correta, limpa; com metáforas idílicas, pitorescas; com uma alegria enorme de viver, sem qualquer fastio e tédio pela vida, vão colecionando prêmios importantes, tornando-se referência de boa literatura. Com gente considerada grande assinando embaixo. Amém.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Esse texto deveria ser dedicado ao senhor JIVM, in memorian
Postar um comentário