segunda-feira, 16 de abril de 2012

José e Pilar


Quando José Saramago morreu, postei alguma coisa aqui no blog a respeito de sua história de amor com Pilar. Daí surgiu o filme "José e Pilar", e, romântica como sempre fui, senti muita vontade de assistir. Não deu certo ir ao cinema à época de seu lançamento, e sempre nutri a ideia de comprar o dvd.
Em janeiro desse ano, comendo uma pizza com amigos, um deles, o escritor Carlos Barbosa, falou sobre sua decepção com o referido filme, principalmente com a tal da Pilar que, mais de que uma mulher de Saramago, era mesmo, isso sim, uma autoritária mandona (desculpe-me a redundância ao parafrasear o que Carlos disse). Fiquei ainda assim querendo ver o filme; aliás, agora queria mesmo era assistir ao desmascaramento dessa tão famosa história de amor.
Sempre duvidei das grandes histórias de amor, apesar de a vida inteira acalentar estupidamente o sonho de viver uma. Talvez uma história de amor nunca tenha realmente existido, pois que todos nós aprendemos desde cedo a mascarar as durezas do amor, idealizando o que não é bom numa relação. Digo isso por que não é possível que Saramago não tenha percebido o sargentão que é Pilar!
Subentende-se nessa observação que ontem assisti ao famoso filme-documentário "José e Pilar". Claro, eu já estava preparada para encontrar aquilo que Carlos Barbosa disse. E fiquei horrorizada, de fato, com o que presenciei. Mais ainda: fiquei com muita dó de Saramago. O que se vê no filme é a exploração de um grande escritor ancião por uma feminista arrogante e autoritária. Pelo menos o que o filme passa é a imagem de um homem verdadeiramente apaixonado por seu carrasco, e sem sequer (querer) notar que sua mulher é um carrasco. Nós espectadores, deitados em nosso sofá ou cama, ao assistirmos àquelas cenas viajeiras do casal nos cansamos, imagine Saramago no alto (e baixo) de seus oitentanos! Pilar botou o homem para viajar de avião pelo mundo todo até esse ficar desidratado e doentíssimo, beirando a morte, vai não vai... O que ela dizia desse movimento todo, desse tour infernal pelo mundo, fazendo aquele velho homem cumprir mil agendas? Dizia mais ou menos assim: que é emergente viver; que Saramago não iria ficar seus dias descansando com uma coberta entre as pernas; que para ela nem tristeza nem depressão existem, pois que para toda e qualquer doença e desânimo existem fármacos. E tome-lhe então botar o homem pra viajar por tudo que é canto do mundo; inaugurando bibliotecas, autografando livros com filas enormes e desumanas na sua frente, proferindo conferências em universidades... Numa dessas percebe-se o escritor cochilando, tamanho cansaço ao ouvir as conhecidas baboseiras acadêmicas. E ela, Pilar, feliz da vida. Claro, bem mais nova de que ele, cheia de vitalidade e vaidade (aguentem a rima), dando entrevista ao mundo todo, fazendo questão de ser arrogante. Numa dessas entrevistas, fica brava quando o jornalista lhe chama de "presidente" da fundação (Fundação Saramago, claro). Com um espanhol irritante, ela proclama com ferocidade que não é presidente e sim presidentA, presidentA, presidentA!, afinal é mulher e não homem.
Enquanto isso, em meio a avião decolando e aterrissando (sempre onze ou mais horas de voo), Saramago não tem tempo de escrever uma linha. A mulher não deixa; a mulher quer viagem e projeção; a mulher quer que o homem "viva" e não "escreva". Há uma passagem em que o próprio diz mais ou menos isso: que, enquanto ele nasceu para escrever romances, ela nasceu para viver. Que se dane, mulher! Vá viver e deixar o escritor realizar em paz o seu ofício! Mas não, ela não deixa e ele cede, coitado. Em nome de um chamado "amor". Era amor mesmo? Quem sou eu para saber dos amores dos outros, se nem sei dos meus... Sei apenas que saí do pretenso filme de amor não emocionada, mas com muita raiva, raiva de Pilar. O que vale no filme é ver Saramago e seu laboratório de escritor e de homem, ainda que esse homem tenha sido vítima de uma mulher autoritária. Imagino quantos livros mais Saramago teria escrito se não tivesse sido obrigado, por Pilar, a viajar tanto. Uma das cenas, das últimas, mais comovente é quando ele - bastante frágil e debilitado, ao sair de um avião e entrar num carro - declara a ela desejar vir árvore numa outra "reencarnação": assim finalmente estaria fincado para sempre num lugar só, sem viagens.

18 comentários:

Bípede Falante disse...

Este filme dá o que falar. São mil modos de ver. Tenho um amigo na faixa dos 60 que sonha em ter uma Pilar que o trate como se ele tivesse 30. Eu tenho enorme simpatia por ela porque ele foi feliz.
beijoss :)

M. disse...

Acho que você disse tudo o que eu senti quando vi o filme. Bjs

Unknown disse...

não vi o filme e não verei, embora nunca tenha acreditado nessa estória de amor, à semelhança de Borges, também Saramago ficou perplexo diante desse obscuro objeto do desejo,



abraço

Anônimo disse...

Pois é, Ângela, eu me senti desconfortável ao assistir ao filme, reconheço esse mérito em "José e Pilar". Que mostra uma disputa entre países pela posse do homem e de sua obra, uma disputa entre a sede de uma mulher e a escrita de um autor genial, a exposição (até certo ponto) cruel das ações de mando de uma mulher sobre o cotidiano de um homem frágil, envelhecido e carente, declarações de amor dele para ela (constantes), afirmação descarada (e constante) de que Saramago aconteceu apenas depois de Pilar, a herdeira, que justifica-se dizendo que se não fosse ela, seria uma secretária a fazer tudo aquilo. Até hoje não compreendo o entusiasmo geral em torno do filme. Mas, como disse, provoca, desassosega, nos faz pensar na tragicidade que reveste o final arrastado de uma vida e de como é possível mascarar a tudo com um interesse predominante, qq que seja. Mas não se trata de uma bela história de amor, isso não. Pelo menos, para mim. Está mais para um manual de como é possível...ah, deixa pra lá, não vale a pena. Abraços, Aérea Persona. O exemplar de "As baianas" chegará aí esta semana. (carlos barbosa)

aeronauta disse...

Bípede: com todo respeito por sua simpatia por Pilar, mas aquela mulher é o cão.
M.: adorei quando você me disse hoje ao telefone que Pilar deveria ter sido processada por explorar um homem passando da terceira idade.
Assis: é verdade: o coitado do Borges também foi mais uma vítima anciã.
Obrigada pelas suas visitas.
Carlos: você está certíssimo: vê-se mesmo é uma disputa entre países pela propriedade de um homem e uma obra e "uma disputa entre a sede de uma mulher e a escrita de um autor genial". Fica tudo tão claro no filme e muita gente não consegue enxergar.
Estou aguardando, com ansiedade, "As baianas". Abraços.

maray disse...

não vi o filme, mas também gosto muito de Saramago. E me pergunto, quando sei de histórias assim, se o que acontece não é uma idealização do homem. Vc fala da mulher de Saramago, mas não estaria vc decepcionada com o homem Saramago? Enfim, como vc mesma diz, amores são complexos, principalmente vistos de fora.

abração

Anônimo disse...

você realmente se acha capaz de julgar um relacionamento tão distante da sua realidade através de um filme?
se você já leu "a viagem do elefante" se lembrará da dedicatória do livro.

se ele a amou cegamente, nunca saberá. mas se ela o tratou com tamanha autoridade, ele, assim permitiu. por amor, necessidade, não importa, ele assim permitiu.

portanto não julgue um amor, uma realidade que está tão longe da tua... e sabe deus quantos livros ele não teria escrito sem a presença de Pilar?

m.

aeronauta disse...

m.: a dedicatória de um livro não diz nada; muito menos estou julgando o amor dos dois. Apenas estou dizendo o que li num filme: uma mulher perversa explorando um grande homem.
Por falar nisso, quem é você, que assinou apenas m.?

Anônimo disse...

achei um tanto que exagerada a sua postagem, com um julgamento que está acima da nossa capacidade fazê-lo.

bom, não te conheço e nem você me conhece, então não acaberia colocar meu nome, se não iria reconhecê-lo.

no mais, parabéns pelo espaço.

aeronauta disse...

"Anônimo", minha postagem não é exagerada. Qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, perceberá que não fui exagerada nas minhas considerações. Sou uma leitora que tem a coragem de se posicionar diante do que acha, do que acredita.
Quanto a você, sei quem é; tenho, modéstia à parte, uma vocação para conhecer estilos. Sei que você também me conhece, e muito. O que é lastimável é você não ter coragem de assinar o que diz e acredita.

Anônimo disse...

admiro pessoas corajosas, mas como disse anteriormente, este julgamente está a cima da nossa capacidade. bom não é questão de bom senso, é questão de percpção. cada um percebe e interpreta o mundo a sua maneira, a partir de seus preceitos, necessidades. se digo isso é por que quando li o post fiquei realmente incomodada com suas colocações. que para mim, não cabe a nós fazê-las, afinal não somos josé e pilar, não somos amigos de josé e pilas, somos apenas espectadores de um filme, rs.
:)

quanto a você saber que eu sou, bom, rs. eu não tenho nem o que dizer, sinto muito que minha escrita tenha se parecido com alguém que você conheça, mas te garanto que não sei quem você é... conheci teu blog através de outros e quando posso dou uma passadinha por aqui :)

aeronauta disse...

Fica tudo bem, Anônimo. Talvez eu esteja lhe confundindo com alguém que conheço. Porém reafirmo que como espectadora de um filme tenho o direito de emitir todas as minhas opiniões; assim como você tem o direito de refutá-las. O que apenas achei estranho em tudo isso foi sua preferência pelo anonimato, coisa que não entendo e não gosto. Mas, como disse acima, fica tudo bem.

Carlos Barbosa disse...

É isso, Aérea Persona, os vigilantes da liberdade de expressão são incansáveis. Vejo, sinto, expresso meu pensamento sobre a obra de arte, qualquer que seja. Todos têm o direito de fazê-lo. Só não têm o direito de perseguir e pretender retirar o direito de expressão alheio. Muito menos anonimamente. A pedra no caixão do assunto: a cena do jantar em casa de amigos (o filme é um documentário, pretende trazer a nós o cotidiano do casal), mostra todo o amor, todo o carinho, todo o respeito, toda a admiração, todo o cuidado, todo o zelo de Pilar... a si mesma... quandro rebate veemente a opinião de José, levantando-se, alteando a voz, emparedando o pobre homem que, resignado, pede pra ir pra casa, onde o espera um romance a terminar. A Pilar é demais! Entre escrever romances e usufruir a vida, Pilar prefere a segunda opção, pois a primeira "não lhe pertence"; decisão fácil, não? O filme é um libelo pilarista, na minha opinião. Abraçoes e que os ventos sejam brisas por aí. Estou aqui enredado, também, com IR. (carlos barbosa)

aeronauta disse...

Lúcidas e inteligentes palavras, Carlos. Você acertou, mais uma vez. Abraços.

aeronauta disse...

Ah sim, Carlos, a cena do jantar na casa de amigos é insuportável! Senti mal com aquela arrogância toda da "fulana". Coitado de José.

Anônimo disse...

é por que não vejo outra forma de postar a não ser pelo anonimato, já que não nos conhecemos, mas sendo assim, prazer meu nome é Mia. rs

e é claro, acho que esses espaços são justamente para isso, certo? expor nossas opiniões, e uma discussão é sempre interessante, afinal é o que enriquece nossa pequena mente!
estamos de acordo? espero que não tenha interpretado a minha posição e os meus questionamentos como algo negativo, ou como uma grosseira da minha parte, só estava, assim como você, expondo o meu ponto de vista. :)

e é, claro, mais uma vez, parabéns pelo blogger!

Sandra disse...

Depois de tantas "falas" só me resta assistir ao filme!rs...

Lidi disse...

Aero, acabo de assistir ao filme "José e Pilar" e concordo plenamente com você. Fiquei com muita pena do Saramago. E o pior é que ele gostava mesmo dela e aceitava tudo com o maior amor. Espero que tenha sido apenas uma impressão que o filme nos causou, mas a que a vida do casal não tenha sido exatamente daquela forma. Até eu fiquei cansada de tanto ver o pobre autografando, dando entrevistas, viajando. Coitado. Bjs