terça-feira, 17 de julho de 2012

Ele

Havia um problema com o ano do nascimento dele, mas que era perfeitamente explicado pelas eleições. Os candidatos a prefeito, vereador, etc, queriam o seu voto, então foi obrigado a aumentar mais um ano na sua identificação para o mundo. Um ano mais velho no papel. Assim, ele dizia ter nascido em 1937 e a certidão dizia 1938. Essa história introdutória é parecida com a de muitos nordestinos, "por aí aos montes" como sentenciou Clarice Lispector. O poder quer o seu voto, não importa se o 'elemento' (como "eles" chamam)  passa por um processo de ressignificação de sujeito.
Não sei se ele - com o ano de nascimento mudado - passou por tal processo de "ressignificação": palavra refinada e artificial demais para a sua simplicidade de mateiro. Não sei também se no fundo lhe agradava ser mais moço no papel.  Ele vai vaidoso, por certo; gostava de uma camisa de casimira, gostava dos cabarés e das mulheres, e da voz nostálgica de Silvinho e de Vicente Celestino. Ele gostava de música, de poesia, dos repentes e dos repentistas. Ele nos levava para as noitadas de repentistas na roça. Ele era bastante sentimental: sempre recitava, com os olhos marejados, "Meus oito anos" de Casimiro de Abreu. E cantava todinha, em todas as partes, a música "Triste Partida", de Luiz Gonzaga. Cantava "Triste Partida" sempre chorando e dizendo que "era assim mesmo": ele passara por quase tudo aquilo, pois que 'a coisa ficou feia' e ele também um dia partiu para São Paulo.
Esse texto aqui talvez apenas interesse a minha irmã, sua eterna apaixonada; e a mim, que ora o homenageio no seu septuagésimo quinto aniversário. Não consigo imaginá-lo com essa idade, ele que se foi moço e belo, aos cinquenta e seis anos. Lembro que em todos os dezessete de julho nós lhe dávamos um presente,  acompanhado de um cartão. Os cartões desapareceram do mundo e os presentes são coisas por demais sólidas, pesadas. Portanto, hoje envio para ele, como presente que ambiciona ser leve, essas palavras, e inscritas no ar, ao vento dessa manhã.

11 comentários:

Maisa disse...

Como sempre,termino de ler me afogando NAS lagrimas Os anos passam e a saudade continua. Perdi minha alma gêmea muito cedo. Queria saber, assim como você, colocar no papel tudo que ele foi e é,na minha vida. Uma belezura tudo que você escreveu. Bjos. Mã

Widal disse...

Que pensas tu? Este texto interessa a todos que compartilharam a vida desta reserva moral de Andaraí.
Widal

aeronauta disse...

Mã: você sabe escrever sim. Bjos.
Widal: sempre bom ter sua presença nessa casa. Obrigada.

Anônimo disse...

Lindo seu texto, Aero, como tantos outros.
Você quando fala dele, especialmente dele, nos corta o coração.Ele que teve de se fazer passar por mais velho e que nos deixou tão cedo e de fato "tão moço e belo". "Triste Partida"!
Ratifico as palavras de Widal: "Este texto interessa a todos que compartilharam a vida desta reserva moral de Andaraí." Eu, privilegiado, muito mais que isso, frequentei sua sala e até já trocamos alguma prosa, a boa prosa do homem simples e enormemente puro e generoso. Tenho isso guardado em mim, como que num álbum de fotografias.

Abraços,
Anônimo I

aeronauta disse...

Anônimo I, seu comentário me fez chorar. Bonito demais poder ter pessoas por perto que compartilharam (e compartilham) preciosidades de nossa vida. Grande abraço.

aeronauta disse...

"(...) homem simples e enormemente puro e generoso": você disse tudo que ele era. Grata, Anônimo I.

M. disse...

Imagino ele puro e engraçado, como você. Lindo texto. Bjs

Anônimo disse...

Sempre que posso passo por aqui para ler seus lindos textos e este me emociona muito! Este nosso querido foi padrinho de Mainha que de tanto amor o ecolheu para me batizar tbm!! Jamais poderei me esquecer do quanto era atencioso e carinhoso com todos lá de casa!! Sim este texto nos interessa muito!! Tudo de bom!! Bjão

aeronauta disse...

Oi, é Solange?

Saberes e sabores disse...

Oi Ângela, sim! Sempre que posso passo por aqui e ontem tive essa linda surpresa que me trouxe boas lembranças. Dê um cheiro em minha madrinha! Bjão

aeronauta disse...

Que bom, Solange, agora posso conhecer seu blogue! Bjos, grata pelas visitas.