
Minha avó sabe toda a história, em seus pormenores trágicos. Mas minha avó nunca foi dada a tragédias, ou melhor, sempre riu delas para vivê-las com completo escárnio, tamanho ceticismo diante da existência. Claro, dessa tragédia específica não ria, apenas me contava como se constata a possível gênese de um destino que se desviou. O destino de mãe. É aquela velha história da Lapa do Bom Jesus, do Bom Jesus da Lapa, que, tanto faz as denominações, é o mesmo lugar.
O que minha avó mais enfatizou nessa história foi a volta para casa. Mãe, ao chegar, abriu a porta do caminhão e saiu correndo pelo mundo, pela rua, aos gritos. Desde esse dia seu destino foi outro. Gritava por Noélia, Noélia Lúcia, sua filha de sete meses. Cadê Noélia? Cadê, gente? As pessoas na rua apenas olhavam aquela mãe completamente alucinada; pois não há resposta, nunca há, para esse tipo de pergunta.
Isso tudo foi antes de eu nascer. Mas vivi e vivo essa tragédia. Ela é contínua, pois que Noélia habita o ar, menina pequena de sete meses já olhando para a lâmpada, batendo palmas, com sua camisolinha branca. Noélia já ficando boa, graças a Deus. Para agradecer, só batizando-a na Lapa, abrigo do Bom Jesus. No caminhão de romeiros vão os padrinhos, os avós, os parentes, os amigos, todos conhecidos, do mesmo lugar. Três dias e três noites, muita poeira. Noélia mole, tossindo. Todos os passageiros sentados nos bancos de madeira, rezando.
Essa história nada tem de original, a não ser que é minha. Nessa história minha irmã Noélia chega à Lapa, doente. E o médico que a atende, um estagiário, a tira dos braços de mãe, levando-a pelo corredor. Volta, após quinze minutos, com a menina morta no colo, e devolve-a à mãe...
Poderia dizer que essa tragédia desviou muitos destinos. Inclusive o meu. Pois que mãe morreu ali naquele momento. A mãe que voltou, sozinha, no caminhão de romeiros, não era a mesma de antes. Nasci, portanto, alguns anos depois, com uma herança maldita, a herança do medo. Mãe e eu, andando pelo mundo, gritando. O medo para sempre nos perseguindo.
Fotografia: Romeiros na Lapa. Da esquerda para a direita, acocorados, pai é o segundo. Década de 1960. Fotógrafo desconhecido.