segunda-feira, 6 de julho de 2009
fragmentos de uma história
Não sei se você se lembra, mas você era bem magrelo naquele tempo. Não tinha carro, mas uma bicicleta, com a qual atravessava a liberdade toda e vinha se encontrar comigo no campo grande. E sempre atrasado. E sempre suado. Lembro-me bem da paquera, antes do namoro, quando você me convidou pra assistir a vida imita a arte lá no glauber. Oh, sangria, Senhor, pois lá chegando vi na telona que era a vida imita a morte, um serial killer dos diabos. Você sempre assim, todo atrapalhado nos modos de agir. E com aquele cabelo cortado rente, soldado da primeira guerra mundial. Feio de doer. Não sei o que é que você tinha que fez com que eu retribuisse o beijo depois daquele filme medonho, já sentados no banco de cimento do campo grande. Beijo cheio de saliva, uma bocona grande a sua, nunca esqueci esse detalhe. Depois comprou uma pipoca pra mim e viemos andando de mãos dadas, feito casal dos anos cinquenta. Eu nem era tão nova assim, já entrada na casa dos vinte e mais um tantinho, e você muito falante, rindo demais com aqueles dentes amontoados. Claro, achei você horroroso, mas nunca fui radical com feiúras, gostava de dar chance a homens feios. Nutria dentro de mim a escandalosa e clichê esperança de que os feios são mais sensíveis e humanos. E você era terno, doce, e gostava de literatura.
Minha irmã ria muito de você; é, agora posso falar. Ela ria de sua bicicleta. Como é que o namorado vai se encontrar com a namorada de bicicleta, numa cidade grande dessa?, ela dizia rindo. O pior é que eu gostava demais de sua bicicleta. Achava romântica a sua pobreza. Ah, como amávamos aquele conto "Gazela", de Rubem Fonseca! Aliás, Rubem Fonseca foi presença imprescindível nas nossas cenas. Você se lembra daquela vez em que me internei pra fazer uma cirurgia, e que na hora da visita você chegou lá na enfermaria do hospital com um pacotão nas mãos? Todo ressabiado vinha me ver, e trazia de presente o que eu mais queria na vida, a obra reunida de Rubem. Eu nem aguentei segurar o livro, de tão pesado, e você enrolou ele todinho num papel de presente, meticulosamente colado, e me disse que levou a noite inteira fazendo isso. Eu não podia segurar o livro, por causa da cirurgia, e você o segurava para mim, passava página por página, enquanto eu lia. Depois aprendemos a ler juntos. E esse foi o maior dos meus enganos. Nunca, nunca poderia ter feito isso. Mas fiz, deslumbrada. Lia em voz alta, lia pra você; antes de dormir, durante as viagens, antes e depois do amor, em noites de tempestade, em manhãs de chuva e sol. Ao fazer isso, nem imaginava, eu perdia, definitivamente, o meu retorno para mim. "Sorôco, sua mãe, sua filha" li pra você num ônibus desconfortável, minha alma cantando e chorando, como a de Sorôco, e seus olhos molhados de água.
Imagem: "Histórias de amor", por Monique Souza.
(www.flickr.com)
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13 comentários:
história de amor. lindo.
Gente, como eu gostei deste texto! :-))
Especial. Estou me contendo para não pedir esse para a antologia.
Sinto-me extremamente feliz quando, no mais íntimo de minha alma, digo: "Eu jamais seria capaz de escrever isto".Adoro tua escrita!!! rs
Oi aeronauta: É a primeira vez que visito seu blog e já encontro esta beleza de conto. Emocionante. Tão linda a história do Feio muito amado!
Que lindeza! Beijos
Aero, fiquei besta assim... lendo e relendo esta beleza de escrita. Valeu, essamenina!
Queria todas as suas histórias para mim.
Bj
Demais. Uma história de amor entre a liberdade, o campo grande e o velho cine glauber. E essa ternura que só você. Demais.
Mas que coisa linda...
Lindo! ;)
Aero, obrigada pelo comentário em meu blogue. Você que não precisa ter dúvidas, pois escreve bem demais!! Admiro você! Um grande beijo.
menina, que conto lindo...espero que vc tenha dito ao feinho mais ou menos o que vc está relembrando agora. se não, e se ele ler, vai sentir arrepios!
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