terça-feira, 29 de junho de 2010

partida de futebol


Marques Rebelo era louco por futebol e tinha uma língua maravilhosamente ácida. Respondeu, portanto, prontamente a um repórter que não há felicidade nesse mundo. Como todos sabiam o quanto ele era louco por futebol, foi logo lembrado sobre a sua felicidade em assistir ao time do coração jogar. Ele retrucou rápido, dizendo que futebol era infelicidade; e que todos os prazeres do mundo estavam associados à infelicidade.
Razão lhe dou: há pior infelicidade que assistir a um jogo? Desde os quatorze anos, naquela malfadada copa de 82, não consigo. Sento pra assistir, mas assim que vejo aqueles onze desalentados correndo atrás de uma bola, que tem como destino outros pés para tomar, me dá agonia. Aí saio da sala.
Na minha cidade todas as famílias iam para o campo de futebol, aos domingos, assistir aos dois times rivais jogar: Bahia e Flor de Lis. Eu não conhecia estádio, mas achava aquele campo a coisa maior do mundo: um campo de chão revolto, minúsculo, com dois gols de madeira velha, sem rede, e aquele time correndo atrás de uma bola que muitas vezes desaparecia, no meio do jogo, para dentro do mato. Era um corre corre dos diabos e um sem fim de tempo à espera de que alguém achasse a bola perdida. Já viram pobreza maior? No estádio quando a bola some, imediatamente uma outra aparece. No campo de futebol de minha cidade não: às vezes demoravam meia hora à espera da mesma e única bola, com o jogo completamente parado...
Mas não há, hoje, estádio no mundo que se compare àquele campo. Ali tinha tudo: meninos vendendo geladinho, pais acocorados, filhos grudados na calça do pai, e pés, muitos pés sujos de poeira vermelha. Tinha Dona Celé, sempre sentada no banco da frente de seu fusca, alheia, pois que ia para o campo apenas distrair-se chupando gelo levado no seu próprio e particular isopor; enquanto Seo Landulpho, o marido, estava lá na frente, também acocorado, assistindo à partida. Tinha muita coisa ali, mas o que não havia, de jeito nenhum mesmo, era lugar para a gente se sentar ou pelo menos se encostar, sequer um muro: o campo era de fato ao relento, com aquele poeirão subindo dos pés dos jogadores e o solzão batendo na cara do povo.
Nesse tempo, assim como Marques Rebelo, eu já sabia que futebol era, como todas as outras coisas do mundo, infelicidade. Pois que para o Bahia, meu time, ganhar foi um sofrimento do cão. Com só doze anos eu já sabia sofrer muito bem. Fiz, na época, um poema enoooorme falando sobre esse jogo. O poema nasceu heroicamente do suor que caiu naquele campo empoeirado e do sol queimando meu juízo. Foi daí que aprendi a sofrer com legimitidade para a copa de 82. Quando aquele malfadado jogo, com Zico e Sócrates, acabou e a derrota era a única verdade possível para o Brasil, me tranquei no quarto, chorando a dor mais dilacerada que tenho lembrança.
Desde então, não consigo sentar diante da televisão, calmamente, e ficar olhando aquela tragédia que é um jogador tentar segurar uma bola no pé enquanto onze impostores querem tomá-la. O pior é que conseguem.


Imagem: "Futebol", por Murucutú.
(www.flickr.com)

8 comentários:

Anônimo disse...

Com um texto como esse quem sente falta de Nelson Rodrigues, quem?

Bernardo Guimarães disse...

para mim, daqui por diante, esta crônica futebolistica passa a ser a definitiva.

Moniz Fiappo disse...

Adorei o texto, embora goste muito de futebol. Sou Bahia, sofrendo demais.

Gerana Damulakis disse...

Até quando o assunto é futebol você consegue construir um texto excelente. Haja talento!

Terráqueo disse...

Consegui ver o estádio, o pó, as pessoas, a menina chorando. Maravilhoso como sempre.

Flamarion Silva disse...

Você é demais. Engraçado, ao ler suas histórias, as minhas renascem,doidas para serem contadas.
Você é excelente escritora. Espero seu livro.
Beijo.

Nilson disse...

Também sofri a tragédia de 82.E joguei peladas de menino em campinhos assim, e que já não existem mais: o 'campo dos canos' de Brumado, o 'gambá', de Caetité. Belo texto sobre esse masoquismo que ainda cultivo. Digo isso roendo as unhas,a exatamente uma hora de começar a legendária peleja contra a Holanda (êpa, isso lembra Nélson Rodrigues, mas quem precisa dele, né, Chorik?). Bora baêa!

Viviane Costa disse...

"... todos os prazeres do mundo estavam associados à infelicidade." O mundo é guiado por leis como essa e depois a pessimista sou eu, rs.