segunda-feira, 14 de junho de 2010

sem qualquer sombra


Ontem sonhei com um sanitário sujo. E perto um cacho de bananas. Eu usei o sanitário sujo, e roubei duas bananas. Duas bananas nanicas, mas bananas, mas roubo. Eu nunca roubei nada, nem flor. Faltou à minha infância fazer maldades: brincar com o enigmático, gatos por exemplo. Entrar, de fato, no reino das ambiguidades, faltou isso à criança amedrontada que fui. Roubar, roubar esmalte, roubar bala, roubar chicletes. Puxa vida, nunca roubei nada: criança anódina, sem graça, querendo ser certa, correta, diante de um tribunal perverso. Eu sempre quis ser absolvida, essa foi minha assídua covardia. Oh, para que ter medo de uma sentença? Afinal, de quem é a culpa? A culpa não tem dono, ela apenas se esgueira nas costas do primeiro besta, a fim de ser aceita. Marquinhos talvez soubesse disso: entrou no colégio pilotando uma motocicleta. Gritou alto e exigiu que ninguém fizesse prova de matemática. Ele era o rei dos que não tinham culpa. Bravo, rápido, com uma espingarda na mão. Marquinhos pra mim era o símbolo da bandidagem, de uma transgressão que doía e me fazia encolher no canto da parede, para que todos soubessem que eu não era componente de seu time. Com seus dentes tortos, Marquinhos ria um sorriso de diabo, botando pimenta em doces e dando de presente aos professores. Pegava casas e casas de formiga e jogava nas camisas dos colegas. Seu olho brilhava de escárnio, seus demônios não se escondiam, clamavam por atenção, queriam ser odiados. Ele me chamava tamborete de brega, toco de amarrar jegue, e eu corria com medo de sua presença grandiosa e torta. A verdade é que sempre tive medo da transgressão, e fazer parte do time de Marquinhos era tarefa para minha irmã, que aprendeu cedo a colocar chicletes nas carteiras dos colegas. Pois que também ela pertencia ao time dos que não têm culpa. Inteira, enorme, pisando firme, olhando dentro do olho do inimigo. Sentava-se na janela lá de casa e cantava bem alto: Quem tiver raiva de mim/ que não pode se vingar/ amarra a corda no pescoço e chama eu que vou puxar. Minha irmã era a pura maldade para se defender do mundo, de Marquinhos, dos Edilsons, das mães, das amigas, de toda a ruindade que há nas coisas. Enquanto que eu recolhia a culpa que ela não tinha. Eu era sua consciência besta, nunca escutada. Sempre fui consciência, meu Deus, sempre fui. Noites e noites perdidas sofrendo a dor alheia, a culpa alheia, a maldade alheia. Por que não aprendi a afogar gatos? Por que não fiz maldades com lagartixas, com sapos? Mas ontem à noite, em sonho, roubei bananas, depois de usar um sanitário sujo. Porém a culpa sobrevoava o sono, a banana já na barriga, e de repente me vi magra, num tribunal claro, sem qualquer sombra. O juiz batia forte na mesa e me acordava.



Imagem: "Claridade no meu quarto", por siferraz.

13 comentários:

Bípede Falante disse...

Aero, quanto mais te leio, mas me vejo parte do seu clube. Não tem jeito. Maldade é uma coisa que vem de dentro. Se não há, não há. Eu ganhei muito pequena um cachorro para ter em que bater, não bati e cobri de amor. É assim. E não é ruim. Mas às vezes é difícil. Eu sei.

Muadiê Maria disse...

Ângela, eu também sonho em não ter a culpa. Posso até localizar o quanto o resquício de catolicismo da minha família me fez mal.
Por favor, se vc aprender a ser má, me ensine, amiga, não esqueça!

Flamarion Silva disse...

Criança não é maldosa não. Criança faz artes e o adulto, que esquece que também foi criança, é quem não entende. Eu era pequeno e "roubei" um abiu na roça de seu Ivo, meu primo viu e foi contar a meu pai, tomei uma surra. Eu também era teimoso como o diabo, só vivia no rio, me cortando no rio, mergulhando no rio, me afogando no rio. Essas marcas de "pequenas transgressões" são os vincos mais vivos na minha alma. Mas agora estou quieto, só lembrando...
Beijo

Flamarion Silva disse...

"Quem tiver raiva de mim/ que não pode se vingar/ amarra a corda no pescoço e chama eu que vou puxar."

Essa eu não conhecia. Excelente.

Anônimo disse...

Repitam comigo esse mantra, meninas. Eu não tenho culpa de nada, eu não tenho culpa de nada, eu não tenho culpa de nada...

Gerana Damulakis disse...

Vc me tira o fôlego. Grande, grande texto!

- Luli Facciolla - disse...

Ainda bem que não afogou gatos... Ia ser uma decepção daquelas! UFA!
E ainda bem que alguém não sabe ser má...
Eu, acho que cantaria a música que Menina da Ilha cantava na janela!

Só não faria maldade com bichos, velhos e crianças...

Beijos

M. disse...

Você é infinita. Infinita, mulher alada. Foi essa palvra que me chegou quando li este texto lindo, grande: infinita. Bjs.

Bernardo Guimarães disse...

menina pequena, medrosa, cheia de culpas, olha no que vc se transformou: na escritora que é meu idolo. seu texto é de tirar o fôlego, me enche de lembranças das pequenas maldades que pude fazer, e me faz me sentir sem culpas.

aeronauta disse...

Obrigada, queridos amigos, por tanto carinho em todos esses comentários. Bjos.

Menina da Ilha disse...

ADOREI! Como sempre, continua sendo minhas lembranças e minha consciência. Muitas vezes fecho os olhos e escuto aquela sua voz cheia de assombro diante de uma barbaridade que eu ia fazer. - Mã, Mã, não faz isso não. Vamo embora. Apesar de ter feito de tudo para lhe ensinar a ser um pouco má para não sofrer tanto com a maldade dos outros, não consegui muita coisa. Você não nasceu para a maldade. Mas estarei sempre aqui lhe defendendo das silvias da vida. Mexeu com você, mexeu com meu lado mau adormecido.Vc e Vinicius são meus filhos nessa vida, que defendo com unhas e dentes, literalmente.

Vivz disse...

A vida inteira fui como você. Culpa pelo que fiz, pelo que não fiz e pelo que fizeram. Hoje, já me pego transgredindo vez por outra. Cheia de culpa - confesso. Porque talvez esteja apenas me vingando de mim.

Saudades daqui, Nauta. Beijo!

LÍVIA NATÁLIA disse...

Ia te ligar agorinha, pra te dizer de voz viva que somos ambas culpadas. Que lindo:"Eu sempre quis ser absolvida, essa foi minha assídua covardia." Mas uso como desculpa o adiantado da hora pois não consigo ainda agir diante desta fria constatação.