terça-feira, 5 de maio de 2009

Desdém


Sempre gostei de chuva: à noite, na minha caminha, debaixo de mil cobertas de retalho. Mas durante o dia, chuva não é mais que um trovejo: sair na rua segurando uma sombrinha horrorosa, com um lado decadente, e o vento abrindo-a pelo avesso, pronto para o sadismo próprio dos ventos. Como se não bastasse, você se distrai e ploft! enterra o pé numa grande poça d'água. O resultado é a humilhação aumentando: agora você já tem, além dos pés ensopados, a barra da calça suja de lama. Cena do inferno de Dante, óbvio. Sem falar no monte de cadáver de sombrinha que você encontra caído pelas calçadas...
Lembro que lá minha terra quando chovia dias e dias, e pontes e pontes viravam água de rio, eu me queixava, dizia que tinha raiva de chuva. Aí pai saía do alto de seu posto para a doutrinação. Lembrava do povo da roça que rezava o ano inteiro pedindo chuva; que não tinha nada pra comer; que só conhecia terra vermelha. Eu na minha indiferença pelos problemas sociais, fazia um muxoxo, pegava minha blusa de frio, um livro e ia deitar no sofá pra ler.


Imagem: www.flickr.com

15 comentários:

imonizpacheco disse...

Sou uma cabra, não gosto de chuva, (quando chove não saio nem por decreto)a não ser numa cama quentinha, de preferencia (se sozinha) lendo um bom livro. Bom também é ouvir a chuva no telhado...

Gerana Damulakis disse...

Eu gosto tanto de chuva que Hélio Pólvora dedicou um conto a mim por conta disso. Mas, hoje foi demais, prejudica as pessoas e todos os setores.

Unknown disse...

Aero, bacana seu texto da chuva. Gostei todo e em especial "Sem falar no monte de cadáver de sombrinha que você encontra caído pelas calçadas..."
Como e onde você escolhe tanta foto boa? Vou ver se acho uma foto minha que bateu na lembrança ao ler este texto. Beijo, ôto.

Lidi disse...

Adorei o texto. Também só gosto da chuva quando estou na minha cama, com meus cobertores e um bom livro! Beijo!

Senhorita B. disse...

Detesto chuva. Me lembra a minha infância e isso me deixa muito melancólica. Adorei o texto.
Bjs

Vivz disse...

Eu me encho de culpa com a chuva. Tudo bem que culpa é meu nome do meio. Mas sinto um embrulho mesmo por dormir gostoso nesse friozinho, mesmo refriada há 2 semanas, enquanto muros e casas desabam por aí.
Ok, não vamos pensar nisso.
Bjs. :)

Anônimo disse...

Aeronauta, sou que nem você. Só gosto de chuva quando estou no seco.

Edu O. disse...

ficar na minha foi o que desejei o dia todo, mas não pude. ahhh, esse povo que não compreende os de açúcar!!!

Marcus Gusmão disse...

O peixe fora d´água aqui se encontra na chuva. Invento pretexto pra sair a pé só para molhar a cabeça. Gosto do tempo chuvoso, sombrio, frio, fico mais dentro de mim, me encontro mais. É uma pena que esta cidade nunca tenha aceitado a chuva de cada ano, que cai religiosamente há 460 anos, há quase meio milênio. Não, a culpa definitivamente não é desta bela chuva como a que caiu hoje. Já pensou todos os canais fluviais funcionando? Encostas protegidas e nenhum deslizamento? As pessoas como eu poderiam sair felizes da vida, a curtir praças que seriam transformadas em chuvódromos, com adultos e crianças brincando de esparramar água de poça na canela alheia.

Marta F. disse...

Admiro sua habilidade na escrita.

Um tema tão forte tratado assim...o desdém da chuva para com os transtornos que causa, o desdém da criança com a fartura que a chuva traz...você é de uma leveza impressionante.

Ives Röpke disse...

Detesto chuva, mas gosto da idéia da chuva.

M. disse...

Estou com Marcus: amo a chuva, invento desculpas pra me molhar também. Mas seria bom, sim, uma cidade mais preparada pra receber essa maravilha que é a chuva. Beijos.

Muadiê Maria disse...

Quero morar nessa cidade planejada por Gusmão. Nessa cidade a gente pode tomar um belo banho de chuva igual a Maria e seu irmão na infância.

Bernardo Guimarães disse...

criança, cantava "tomara que chova três dias sem parar" e adorava banho de calha do telhado, quando minha mãe não estava ( ela achava que banho de chuva fazia mal). hoje, minha trilha sonora podia ser "vou pra rua e bebo a tempestade"

Alexandre de Alcântara disse...

Gosto muito de dirigir na chuva,,e ouvindo música é claro.