quinta-feira, 7 de maio de 2009

Vestido azul


Eu tinha seis anos e estava na escola quando vi aquela mulher. Uma mulher vestida de azul, tão bonita! Tinha os cabelos cacheados, um rosto alegre. Levava a tiracolo seu filho, um rapazote de seus dez pra onze anos. Segui aquela mulher até longe, e falei, insistentemente, pra mãe o quanto ela era bonita. Esse foi meu primeiro contato com a beleza. Nunca me esquecerei disso. Depois soube que aquelas pessoas que chegavam da roça seriam os nossos vizinhos. Família grande, uma moça, três rapazes e uma menina da mesma idade que a minha. Inclusive essa menina, Sílvia, seria colega de classe, do primeiro ano primário.
Rua da Ilha. A casa onde eles foram morar tinha uma fachada antiga, duas janelas e uma porta. Casa bem maior que a nossa. Fizemos logo amizade. Sempre gostei daquela mulher: ela era bonita, alegre, e gostou também de mim. Minha amizade com sua filha é preciosa, mas minha amizade com ela é mais preciosa ainda: ela me conheceu pequena, de vestido curto, gordinha, indo pra sua casa e não aceitando tomar lá nem um gole d'água. Mãe não deixava, e eu era obediente. Não tinha um dia sequer que eu não ia lá. Quando eu e Sílvia brigávamos, ela não tomava partido, e acreditava tanto em mim, tanto, que uma vez inventei uma mentira e ela deu uma surra na filha, acreditando ser essa a culpada.
Cresci, e nunca perdemos a amizade. Ela sempre ali, por perto. Criando netos, ramificações daquela filharada toda. Saí de minha terra, mas toda vez que lá volto, bato na sua porta pedindo dois dedos de prosa. Prosa boa, de levar uma tarde inteirinhazinha rindo. Estou ouvindo agora seu sotaque, seu jeito de falar tão peculiar, a maneira de me receber na cozinha com a alegria das mais afetuosas anfitriãs. Me levava na despensa e me mostrava aquelas formas largas de bolo de milho. Ah, como eu me fartava. Assim, comendo, ficava a par de todos os acontecidos durante minha ausência.
Faz tanto tempo que não vou a minha terra. Um ano e alguns meses. Nunca passei tanto tempo distante. Da última vez que lá estive, claro, fui vê-la. Conversamos e rimos na cozinha e depois ela me levou até a porta. Na porta ficamos conversando, conversando. Ela dizendo Não vá não. E eu Antes de ir embora eu volto pra gente conversar mais. Fui embora e não voltei. Clotildes, seu nome. Nome bonito, antigo. Parece saído dos romances de Machado.
Ô Cróte, agora eu é quem lhe pede: não vá não. É cedo, muito cedo ainda, querida. Nossa prosa é tão antiga, precisamos colocá-la em dia. Saia desse lugar frio. Precisamos relembrar aquele seu vestido azul. Lembra-se dele? Tire-o do cabide e vamos de novo, alegremente, prosear na cozinha...


Imagem: "Barra do vestido azul", por Elba Maria.
(www.flickr.com)

14 comentários:

Unknown disse...

Belo, muito belo.

Meninadailha disse...

Sem palavras. Se escrever mais alguma coisa, me derreto em lágrimas.

Anônimo disse...

Aero, dez esse texto, pra variar. Mas você me deixou encucado. Mais um post vai sair por tua "culpa". Aguarde...

LÍVIA NATÁLIA disse...

Comento o óbvio: lindo!

Gerana Damulakis disse...

Emocionante. Não quero dizer mais do que isto para não estragar a própria emoção deste momento imediatamente após a leitura.

Nilson disse...

Tocante esse texto. Deu saudade de Clotilde. Deu pra imaginá-la inteirinhazinha.

Edu O. disse...

LIndo!

Anônimo disse...

o vestido azul transformou em flores amarelas quase brancas, lindas mas ficou só na despedida... como é forte esta saudade, só posso tê-la em jardins que teimam em multiplicar o amor que ela semeou!

Anônimo disse...

o vestido azul transformou em flores amarelas quase brancas, lindas mas ficou só na despedida... como é forte esta saudade, só posso tê-la em jardins que teimam em multiplicar o amor que ela semeou!

Anônimo disse...

Aeronauta,
Que texto lindo!
Ele nos leva junto. Uma sensação muito boa para quem leu.
Parabéns!

Anônimo disse...

Aeronauta,

Que maravilha de texto. O leitor viaja junto com a memória do narrador.
Achei lindo!

Inocêncio disse...

Aeronauta,

Que coisa interessante. Sempre nutri uma silenciosa admiração por D. Clotilde. Realmente ela tinha um jeito peculiar e especial de ser; uma discrição necessária a quem se posta como uma verdadeira Senhora; uma tez respeitosa e terna simultaneamente; uma sutileza inata. Infelizmente, não tivemos (eu e ela) maior aproximação, mas esta sua apresentação póstuma só veio ratificar toda a impressão que tinha acerca de D. Clotilde. Com certeza ela parte deixando saudades a todos que de certa forma a conheceram, mas também nos deixa a convicção de que descansa após ter, como poucas, cumprido honrosamente a sua missão aqui na terra.

Widal disse...

Aeronauta,
Mesmo com grande atraso,depois de ler dezenas de vez esta confição de amor, admiração, cumplicidade...
muito lindo, lindo demais, só perde em beleza para a propria, resta agradecer.
Widal

Anônimo disse...

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