quarta-feira, 7 de outubro de 2009

até o pano


Saudade dos vendedores de livros que passavam de porta em porta com aqueles livrões encardenados. Na rua, desciam do carro e iam cada um para uma casa. Com sorriso vasto, jeitão próprio de quem convence a uma compra grande, batia palmas lá na porta. Eu abria com outro sorriso. A família toda na sala. Livros saindo das caixas, ah tantos, parecia que brotavam dali num passe de mágica, sem parar. Machado de Assis, capa vermelha, letras douradas; Aluísio Azevedo, capa cinza, letras douradas; Jose Lins do Rego, capa marrom, letras douradas; José Mauro de Vasconcelos, capa azul com letras douradas. Ali era tudo dourado, ouro legítimo. Pai, na sua generosidade, fazendo cheques. E nós arrumando a estante. E mãe comprando bicho branco de louça para enfeitá-la diante dos livros. Lembro de um cachorrão de dois metros de altura que ela colocou logo abaixo da coleção preferida de pai: o mais amado por ele, Jorge. O cachorrão era mal encarado, não combinava naquele mundo de brilho, onde os livros juntinhos se colavam numa intimidade amorosa. Mas por nada nesse mundo mãe tirava ele dali. Fazia guarda, só Deus sabe se aos livros ou a sua televisão, misturada àquele mundo de papel em pompas. É, os livros eram pomposos, próprios para enfeitar casa de interior. Tanto eram para enfeitar que, depois de arrumados, para tirar um de seu lugar dava trabalho; eles se colavam uns nos outros, parece até que não queriam ser lidos. Não sei que cola era aquela, invisível, que se esgueirava na encardenação luxuosa. Briga boa: eu puxando os livros, desarrumando tudo, mãe reclamando, os bichos saindo do lugar: bois e gatos se desmoronando em tempo de cair. Menina, menina, cuidado com meus bichos! Enfim, saiu daquele horror, inteirinho, Vamos aquecer o sol, de Zé Mauro. Zé Mauro, Zé Lins, tudo gente íntima, morando lá em casa, naquela estante cheirando a óleo de peroba. Que cheiro inesquecível. Até o pano, meio preto meio branco, embebido no óleo, minha memória guardou.



Imagem: o brilho ausente do nosso lembrar, por stop me.
(www.flickr.com)

6 comentários:

Bernardo Guimarães disse...

ahh...um texto com cheiro de óleo de peroba. pra mim que tenho memória olfativa afiada, foi um presente!

Nílson disse...

Óleo de peroba na estante: acabo de sentir o cheiro! Lembro tb, na casa de uns parentes, de umas coleções de Jorge Amado, etc, capa dura, arrumadas de um jeito que não era pra ser desarrumado nunca, tipo umas pirâmides invertidas. Ali era pra enfeitar mesmo!!!

Unknown disse...

Vendedores de livros me lembra os vendedores de Barsa, só que lá em casa era o contrário, meus pais nunca compravam a bendita Barsa! Vai pra uma biblioteca!! diziam eles.
Que trauma, queria tanto ter uma Barsa!!

Unknown disse...

PÔ, vi os livros, os bichos, me virei para desagarrar um, o cheiro de óleo de peroba grudou! Que beleza. Que beleza. Dia desses venha em minha morada conhecer a 1a. estante da casa do Chame-Chame.
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fui ler os comentários depois. Diogo: ganhei uma Barsa, dada por minha mãe porque muito antes meu pai dera a mim e a meu irmão uma Enciclopédia Britânica (coitado acreditava que aprenderíamos inglês)

Gerana disse...

Belo texto, gostei muitíssimo.

Lidi disse...

Que belo texto! E super imagético, vi cada cena que escreveu! E que bom que você desarrumava tudo, ouvia reclamação de sua mãe, mas ficava íntima dos livros, dos escritores. Queria eu ter tido uma estante assim para desarrumar... a daqui de casa sempre teve cheiro de óleo de peroba, mas livros não!! :( Hoje, eu tento recuperar o tempo perdido. Beijo, Ângela.