quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Rito


Desde o meu primeiro dente de leite caído da boca e jogado no "mourão", brinco falsamente com as perdas: Mourão mourão toma o meu dente podre e me dá um são. Claro que meu dente de leite não estava podre, eis o problema. Se estivesse podre poderia, sem dó, jogá-lo fora; estava novinho, mas caiu, saiu de minha gengiva. Mesmo assim fui obrigada a me livrar dele, lançando-o em cima da casa, com aquela cantiga falsa, cantada porque todo mundo cantava. Não importava a qualidade do dente, importava o ritual mentiroso.
Sofri muito com a perda de meus dentes de leite. Chorava pedindo a mãe meus dentes de volta. Esta foi a primeira imposição de desapego que a vida vociferou para mim. Ia comer e sentia falta deles; sorria e me via um ser sobrenatural. O pior foi o nascimento dos segundos dentes: cada um maior que o outro, maior do que eu, maior de que minha infância: dentões amarelos sem querer rir.
Ai, ai, brincar com as perdas. Pensar que o que vem depois é bom. Como gostar daqueles novos dentes? Como? Quadradões, impositivos, adultos? Eu queria era meus dentinhos suaves, discretos, inocentes. Brincar com as perdas. Pegar o dentinho de leite e jogá-lo sobre a casa com aquela cantiga besta. Ai, brincar com as perdas tendo uma lágrima por dentro. Volto a reiterar: meu dente estava saudável, saiu sem precisar ser amarrado com barbante, sem precisar ter ido ao dentista. Pronto: caiu sozinho, novo em folha. Essa configura a pior das perdas: a que se perde "naturalmente", que a natureza impõe sem conversa, sem réplicas ou negociações.




Imagem: Perdas... por mhaulzanardi.
(www.flickr.com)

6 comentários:

Gerana disse...

Se eu fosse poeta, faria uns versos para você. Depois que leio seus textos, fico assim, impregnada de poesia, sentindo poesia no ar.

Edu O. disse...

E depois deles umas outras sem reposição. Ai ai, brincar com as perdas....

Edu O. disse...

E depois deles outras sem reposição.

Bernardo Guimarães disse...

só mesmo vc para traduzir desta forma as nossa perdas: belissimamente!

Lidi disse...

Brincar com as perdas é mesmo difícil, ainda mais tendo uma lágrima por dentro.

Mas você tem é facilidade de brincar com as palavras, com a poesia... e maravilhosamente bem.

Um beijo.

Anônimo disse...

Mais um magnífico texto, com um paralelo interessante entre os dentes que vão e as perdas. Ou seriam as substituições indesejáveis piores que a perda, posto que nos obrigam além de nos retirar algo querido, nos impõem o que não queremos?
Bj