sábado, 31 de outubro de 2009

sem véu de alegoria


Há um tempo de mudez. E é este. Bocas tampadas com esparadrapo. Não é um esparadrapo de boa qualidade, pois que a demanda é grande. As farmácias quase que só vendem esse objeto. As próprias vendedoras enchem a bolsa, e quando os fregueses chegam ficam com ódio, querendo mais e não achando. Todos querem tampar a boca. Descobriram que é bom. Dar um alívio às cordas vocais, à saliva, aos dentes, enfim, aos movimentos palatais, pode ser, acreditam, o grande segredo. Mas ainda não conseguiram alcançar o silêncio. O costume põe a boca torta, e o que saem dessas bocas são grunhidos, no esforço da comunicação sem fala. De qualquer maneira, pois, a garganta não tem descanso: o grunhido vem de lá e espoca nos olhos perplexos quando se percebe que o que "disseram" foi entendido de outra forma. Para se chegar ao estágio de descanso absoluto da garganta e adjacências é preciso muito, muito esforço, percepção e exercício. Por isso essa mudez não trouxe ainda a felicidade. É bom que esperemos. Chegará o tempo em que todos jogarão fora o esparadrapo, por consciência plena do primarismo dele. Não, não é necessário o esparadrapo, gritará um iniciado em plena praça pública. E todos tirarão aquela parafernália da boca sem nenhum grito, sem nenhum espalhafato. Bestamente iluminados.




Imagem: "iluminados", por loquetemiro.
(www.flickr.com)

5 comentários:

Mônica Menezes disse...

Não, não é preciso o esparadrapo. Sempre bom demais te ler. Bjs

Andréia M. G. disse...

Cada vez mais inspirada. Bestamente iluminada sempre fico ao vir aqui. :-)

Antonio Sávio disse...

Nossa. Ótimo texto.

Gerana Damulakis disse...

Há o tempo de calar e o tempo de falar, vc disse tudo.
Estou sentindo sua falta, vontade de trocar umas palavras, de tirar o esparadrapo.

Edu O. disse...

Lembrei-me de Ensaio sobre a cegueira, de Saramago.