quinta-feira, 24 de maio de 2012

conversa à meia noite


Nascer deve ser tão difícil como morrer. Não sabemos nada sobre uma coisa nem sobre outra. Contam que, como todas as crianças, ao nascer choramos (ou não). Contarão que morremos assim ou daquele modo. Mas nos dois quesitos só o mistério das coisas acontecidas persiste, pela voz ficcional do outro. Será que um dia, em outra dimensão, teremos ciência absoluta, com riqueza de detalhes, desses dois acontecimentos tão nossos, tão íntimos? Caso positivo poderemos alcançar, enfim, algo que teria que ser puramente individual, intransferível: a memória de nossa própria existência. Enquanto isso não acontece, peregrinamos pelo mundo como estrangeiros, esquecidos de nossa própria história - aquela inicial e a que virá, figurando tão somente como personagens da memória alheia.

Na memória de mãe e de todos os que presenciaram o meu nascimento, eu nasci dando um trabalho danado: ao invés de vir com a cabeça, como todo mundo, vim com as pernas: primeiro uma perna, depois outra. Vim com sacrifício, vim com solidão, vim a pulso. Isso talvez explique essa minha idiossincrasia pelo avesso. Se minha memória do meu nascimento fosse íntegra, total, eu poderia estar certa ao realizar a analogia dessa com o acordar. Acordo todos os dias com muito sacrifício, encolho as pernas recusando-me a sair do sono; mas a vida me puxa uma perna, depois me puxa outra, e me tira do ventre, de novo, a pulso. Acordo todos os dias como se morresse. Se eu soubesse como é morrer, a analogia poderia ser mais perfeita. Intuo que deve ser tão difícil como acordar e como nascer. 

Talvez se possuíssemos integralmente em nossa psique esses dois grandes acontecimentos de nossa biografia, conseguiríamos o caos ou a libertação.Lembrar da vida intrauterina no momento de sua saída, no movimento de partida e chegada a esse mundo, poderia ocasionar um grande trauma; mas poderia também nos trazer a libertação: abrir nem que seja uma janela do mistério serviria, quem sabe, para nos dar um certo alívio, o êxtase que só os santos conhecem. Quanto à nossa morte, nossa psique bem que deveria tê-la como esboço em algum escaninho. Gradualmente iríamos conhecê-la em estado intrínseco, íntimo. Isso também poderia nos levar ao caos ou à libertação. Caos porque ao desvendar o grande mistério isso talvez nos levasse ao tédio destrutivo, que é aquele que destrói a curiosidade. Libertação porque ao sabermos a "grande verdade" antes dessa acontecer, enfim descobriríamos que toda encenação é verdadeira e ao mesmo tempo não é. Teríamos, assim, a constatação irrefutável - e isso serviria para os seres objetivos, pragmáticos e empedernidos - que a arte sempre teve, tem e terá razão.


4 comentários:

Naiana P. de Freitas disse...

Aeronauta,

Sinceramente? MARAVILHOSO texto!

E se o maravilhoso fica vago, digo assim: consigo rir, refletir e me encontrar em seus textos.

abraço apertado!

Lidi disse...

De certa forma, nasci a pulso, pois o parto não foi normal. E também "acordo todos os dias com muito sacrifício". Da morte, tenho medo, e desisti de tentar entender o seu "grande mistério". Sim, "a arte sempre teve, tem e terá razão". Belíssimo texto, Aero. Bjs

Bípede Falante disse...

Uns dias antes de morrer, já no hospital, minha mãe me disse: minha filha, como é difícil morrer.
Tentava, desesperadamente, se ir, e o corpo não a obedecia.
É difícil, sim. E em muitos sentidos.
Beijoss

Sandra disse...

"...peregrinamos pelo mundo como estrangeiros, esquecidos de nossa própria história...figurando tão somente como personagens da memória alheia." Eu acredito Ângela que é aí que verdadeiramente existimos, na memória alheia...rs. E como isso é bom...é maravilhoso, sermos tão bem ou mal lembrados a ponto de "morarmos" na memória de alguém. Belo escrito!