sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Das lembranças roubadas

Guardo uma lembrança que não é minha. É de minha irmã. E ela sempre fez questão de frisar isso: "é MINHA a lembrança, não é sua, você não tinha idade para se lembrar disso". Mas a cena entrou na minha memória de uma maneira irrevogável, visceral; tanto que posso assumir a propriedade da lembrança, mesmo minha irmã não gostando nem um pouco.
A cena é em preto e branco.
Mãe, no fundo do quintal, debruçava-se sobre uma bacia, lavando roupas. Eu em pé à porta de nossa casa, na roça, com um vestidinho curto, os cabelos assanhados. Do meu lado minha irmã se esgoelando de chorar. Magrinha, com os cabelos também assanhados, dois anos, e já vivenciava sua primeira tragédia:
À nossa frente, um homem ia se distanciando, e quanto mais ele se distanciava mais minha irmã chorava.
O caminho era estreito, dava apenas para uma pessoa passar. E longo, nossas vistas alcançaram aquela partida por muito tempo, até hoje ainda alcançam.
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Minha irmã retruca que me lembro disso porque ela contou muitas vezes essa história para mim. Daí, por sugestão de imagens, a cena ficou na minha memória.
Não vou mais discutir isso com ela. Mas em mim essa imagem também dói. Por ela. Por meu pai. Eles se amavam muito, eram grudados um no outro, e ele precisava partir. Para onde? Todos sabem. Dizer qual o lugar seria só mais um clichê nordestino.
Ele foi.
Voltou em menos de um mês, dizendo, dizendo, dizendo que voltou por ela, por minha irmã, não agüentou a saudade. Lá, ele só se lembrava dela, lá era um mundão estranho, muito carro, muita gente, e não arrumou emprego algum, e o que ele queria mesmo era voltar. Voltar para ela.
Essa é a dolorosa e grande lembrança de minha irmã, e que eu roubei. Por despeito, talvez. Por compaixão, quem sabe. Por inveja... Não sei.

3 comentários:

Luiza disse...

Ah, que lembrança "bonita" essa que tu guarda. Eu sempre venho aqui e sempre vejo coisas do tipo.. e, na maioria das vezes, falando da tua irmã.
É bacana ler o que tu escreve sobre vcs e tua vida.
Beijos

Anônimo disse...

Aeronauta,
enquanto ele voltava por minha causa, vocë vivia a chorar procurando o leite que nao deixava secar. Você só chorava querendo de mãe e do mundo não sei mais o quê e ela mandava pai sair comigo para diminuir o trabalho. Ele e eu sem Mãe. O que nos restava lá fora senão a união e a cumplicidade?

Vivz disse...

Vc, suas gavetas, suas lembranças...