segunda-feira, 22 de junho de 2009

heranças


Na nossa família todos os afetos foram exagerados: muito remédio quando estávamos doentes; muita preocupação com a escola: livros, fardas, bolsas; espionagem completa para não andarmos em más companhias; nada de comida forte como feijoada, sarapatel, vatapá, para nossos intestinos frágeis não serem debilitados tão cedo, e uma infinidade de outros cuidados, prova de afeto e amor de uma mãe e de um pai prontos para criarem duas filhas preciosas. Que coisa!, todo o amor do mundo nos foi dado sem necessitar de um abraço e de um beijo. Não me lembro de um beijo de mãe e de pai estalando nas minhas bochechas em qualquer época do ano, aniversário ou natal. Sequer um abraço. Como seria um abraço de mãe, com aquelas mãos grossas e cheirando a cebola, que me beliscavam na hora de comer para que eu não morresse de inanição? E pai? O abraço dele seria morno, completamente doado, sem nenhuma timidez? Ele próprio me diria agora: Não, minha filha, gente da roça não sabe fazer essas coisas. Gente da roça aprende que amar é alimentar, vestir, criar filhos para serem pessoas de bem. Quanto a mãe eu não sei o que ela diria hoje, pois que aprendeu a beijar e a abraçar o neto como se tivesse praticado isso a vida toda. Mas conosco o abraço é sem jeito, deslocado. Eu e minha irmã aprendemos muito bem a lição: nosso abraço é sempre frouxo, besta. Beijar? Quando ficamos muito tempo distantes, só aquele fingimento de beijo dos dois lados, sem graaaça, morrendo de vergonha uma da outra.
Meu Deus, eu não sei abraçar. Quando alguém abre os braços pra mim, meus nervos da coluna travam, fico dura igual a um espantalho. O resultado é mesmo um abraço alijado. E beijar, eu sei? Será que sei dar um beijo num amigo bem no centro das bochechas? Acho que não. Meu beijo é fingido, nunca beijei de verdade. Nunca apertei os lábios com gosto e apliquei o beijo bem no centro do seu rosto. Fiquei pelas periferias, covardemente beijando o ar. Porém meu afeto, não duvide das heranças, é sempre exagerado.


*Este texto surgiu como consequência das impressões líricas e lindas que ficaram em mim após a leitura de um texto inesquecível de Gerana, dedicado a seu irmão. Leiam lá no "Leitora Crítica": "Meu primeiro súbito amor", escrito em 25/10/2008. (http://leitoracritica.blogspot.com)

Imagem: "Abraço", por Ana M2007.
(www.flickr.com)

11 comentários:

Senhorita B. disse...

Este texto de Gerana é muito lindo. E o seu também. Que belo diálogo!
Beijos,
Renata

Marcus Gusmão disse...

Mais um texto de sua infância que é minha também.

Bípede Falante disse...

Na minha família, não tinha nenhum exagero; talvez, o da loucura e o das vaidades. E sei como é duro, duríssimo. Mas a gente, um dia, consegue ser diferente e abraçar e beijar de verdade. Viver inteiramente de verdade. Você vai conseguir. Você é delicada, inteligente e generosa com as idéias, com as palavras e com seus areoleitores. É só uma questão de tempo e, depois, de te ler, tenho certeza que ele está perto.

Nilson disse...

Comigo tb foi assim. Nós, de sertão adentro, diferimos do estereótipo do brasileiro caloroso, extrovertido. Às vezes eu brinco: tive criação teutônica sob o sol do Nordeste! Belo texto o seu. O texto de Gerana tb é. Belos presentes pra mim, que estou aqui em Brumado curtindo reminiscências...

Anônimo disse...

As infâncias que se cruzam, que se metem umas nas outras. Às vezes inteiramente, outras às metades ou pinceladas. Guiadas por belos textos de Aeronauta. Vivá!

Anônimo disse...

Voltei por conta de irmandade sem abraços e beijos, bem integradas e cheias de bem querer como me parecem ser você com menina da ilha e eu e meu irmão. Outro dia uma amiga nos encontrou e disse assim "aí eu vi... dois irmãos solidários! todos dois de bengala"

M. disse...

Também me faltaram beijos e abraços, mas nunca me faltou amor. Um amor silencioso, guardado. Guardador. Lindos, seu texto e o de Gerana. Beijos.

Gerana disse...

Eu entendo tudo que está contado no seu texto e traduzo como amor, como muito amor. Porque, contas feitas, o que importa é a atenção, a preocupação com os que amamos - gosto muito do exagero nas preocupações (sou assim com minha filha).
Eu só tenho o que agradecer, seja pela sua leitura feita com o coração, seja pelo seu texto irmão (posso chamar assim?).

Anônimo disse...

Belos textos. Já viu como oriental se cumprimenta? Não preciso dizer, não sou de beijinhos e nem de abraços, um não-me-toques desproposital e tímido, um senso de preservação ridículo e um leve aceno de cabeça, não muito acentuado, que minha coluna não aguenta maiores reverências.
Bj

Lidi disse...

Aero, lindo o texto da Gerana e o teu. Vocês me emocionaram. Adoro abraçar e beijar os meus amigos, mas com a minha família tenho um tanto de dificuldade. Acho que nunca dei um abraço de verdade em meu pai, apenas aquele bater nos ombros. No entanto, o amor sempre foi (e continua sendo) exagerado. Um beijo!

Edu O. disse...

Depois de ler teu lindo texto, corri para ver a inspiração. Obrigado pela beleza de Gerana e a tua.