
Vou lá em casa e já volto. A porta está no trinco: é só puxar o cordãozinho e entrar. O chão, vermelho e encerado, brilha. Dá até pena pisar com essa sandália suja de rua. Vou entrando, e nem preciso chamar por mãe, sei que ela está no fundo da casa, sinto o cheiro de café pronto. São nove e vinte da manhã, e ainda deve ter café na mesa. Pai está no sindicato e mãe preparando o almoço, agoniada como sempre. Às dez, dez e meia, e o almoço já prontinho da silva! Mas ainda não quero saber de almoço, quero é o cuscuz que está na mesa me esperando. Mãe, ô mãe, resolvo chamar por ela, corredor adentro. Ela, na janelinha que dá para o rio, conversa com alguém que passa do outro lado. Conversa telefônica: uma grita e a outra responde. Essa janelinha é um charme: pequetitita, porém dá para ver o rio e a imensidão toda do lado de lá. Numa segunda-feira, na agonia horrorosa desse dia, mãe jogou um dinheirão pela tal janelinha. Disse que estava agoniada e fez sem querer. A sorte é que o dinheiro não caiu dentro do rio. "Acode, meninas, vão pegar o dinheiro lá embaixo!" Escuto esse eco até hoje. Ah, mãe... Sempre com o cabelinho curto, motivo pra pai ficar com raiva e dizer que mulher tem que ter cabelo comprido, que ela precisa deixar o cabelo crescer, que daquele jeito parece mais é um homem. E ela: "Sai disso, Bino! Tu já me conheceu assim! Papai é quem cortava meu cabelo!" Essa conversa se repetia, e eu dou risada agora, ao lembrar. Já estou subindo as escadas que dão para a salinha. Nessas escadas, pelos buracos da porta que dá acesso à chamada "salinha" e à cozinha, eu, aos sete anos, espiava pai tomar banho na caixa d'água. Depois mãe tampou todos os buracos com papel higiênico. Agora as portas estão abertas e eu vou entrando. Na salinha a abertura para os sanitários, a caixa d'água e o quintal. Ah, o velho pé de carambola continua balançando suas folhas mornas... Mãe, debruçada sobre sua horta, nem me vê entrar, entretida. O rio está cheio, ouço o murmúrio dele, e sinto o cheiro de terra e pedra molhadas. Mãe me vê e sorri. É quase outubro. Que vontade de ficar.
Esse texto vai em homenagem a Nilson, lá do Blag (http://nilsonpedro.wordpress.com), e sua "Casa Tomada": entrei e senti saudades de minha casa antiga. Na foto acima, mãe sentada na porta.