quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Abismo e sonho


Ontem confessei a meus alunos algo muito precioso, imagem de minha infância: eu lendo Meu pé de laranja Lima e chorando muito com os sofrimentos de Zezé; logo depois relendo o mesmo livro e chorando muito; a seguir, lendo mais uma vez e chorando chorando chorando. É tal cena, brinquei com os alunos, a revelação de uma aptidão ao masoquismo? Não, claro que não. O que acontecia já era a movimentação da vida me gratificando com a literatura. Eu tinha nove anos, sabia dos desconcertos do mundo; e Zezé sofrendo estabelecia comigo uma cumplicidade, uma comunhão de destinos. Oh, não sou diferente, não estou sozinha: outra criança também sofre como eu. Por isso o apego ao livro, a repetição da leitura e do choro. A gratificação proveniente das páginas dos romances me fazia lúcida, mas me insuflava vida; pois ver quase "tudo" não significa parar de sonhar.
A gratificação que a literatura traz tem um preço alto: o preço do mergulho na vida, conseqüentemente na dor. Há uma edificação aí, um ganho, uma perda, um soluço, um alívio, uma alegria. Há o grande e sofrido prazer, como diria Harold Bloom em seu desperto delírio. Sofre-se e é feliz, algo que parece contraditório, mas que leitores reincidentes entendem. A literatura nos dá a visão, a vivência, a possibilidade de entrarmos no mistério: largueza de abismo e sonho.


Imagem: "Drama e mistério". Por Miguel Angel Avi.(www.flickr.com)

7 comentários:

Marcus Gusmão disse...

Tenho exatamente a mesma lembrança aeronauta. Chorando sobre o livro, eu tinha 11 ou 12 anos, na biblioteca do Polivalente de Castro Alves, na cena em que ele relata a morte do portuga. Lembro também que, por causa do livro, resolvi conversar com uma árvore que havia na porta da casa dos meus tios, próximo à rodovia Anagé-Conquista. Busquei esta árvore agora no natal, mas o asfaltamento da estrada levou ela junto. Jamais voltei ao livro. É uma boa dica. Vou comprar para Luísa e aproveitar para tentar reler.Desculpe o comentário-post mas é que você bateu na veia.

- Luli Facciolla - disse...

Ei! Também leio e choro mil vezes com "meu pé de laranja lima"...

Beijos cúmplices

Anônimo disse...

Até eu que naquele tempo era ruim de choro, me acabei com o sofrimento do pobre Zezé. Como tenho a mania de recomendar Vamos Aquecer o Sol para quem leu meu Pé de Laranja Lima, já que para mim é a continuação, vou indicando para Marcus, caso ainda não tenha lido.

aeronauta disse...

Menina da ilha:

Esqueci de colocar no post que a cena que descrevi na aula para os alunos foi de nós duas chorando lendo Zezé, uma de um lado e a outra de outro. Eta chororô bom. Os meninos adoraram.

Anônimo disse...

Eu quero ser sua aluna um dia.

Anônimo disse...

Ai meu Deus, só saio anônima. Soraya.

Líquido de Insensatez disse...

lembro me desse dia, a senhora se emocionou mesmo, foi muito bom a sua lembrança de infancia que me motivou a lembrar de como era bom ser criança.