quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
"O cocho" ou "Das maldades caridosas"
Depois de tantos anos posso dizer que minha irmã é minha grande memória. Ela está presente em todos os momentos de minha infância, e sem sua forte presença eu não teria o que contar.
Nunca tive muito chamego com a noite - sinônimo de insônia, solidão. Escutar gente roncando enquanto você olha para o telhado, não é lá coisa que preste. E eu adorava quando em algumas noites minha irmã, inspiradíssima, começava a me contar causos engraçados. A noite se espichava, graças a Deus, pra eu poder ouvir todas as histórias e dar mil gargalhadas. Como sempre fui crédula, ela explorava bastante essa minha característica e exagerava no que contava para que minha risada fosse pra valer. As risadas eram tão escandalosas que mãe e pai, do outro quarto, se incomodavam. Pai ameaçava, de cinco em cinco minutos:
- Meninas, parem, está tarde: eu vou aí.
Esse eu vou aí, ameaça que nunca se concretizou, jamais saiu de meus ouvidos. Tal frase ficou em suspensão no tempo como uma carícia, um sinal de ternura envolto na alegria trazida pelas histórias de minha irmã.
Lembro-me bem de uma noite, na qual ela extinguindo todo o seu arsenal de invenção, e dizendo que iria dormir, implorei, pelo amor de Deus, contasse mais um causo, por favor. Então ela puxou da cachola uma invencionice que lhe rendeu prejuízos.
Me contou, num tom conspiratório, que quando éramos crianças, enquanto eu dormia no meu berço toda confortável, ela dormia era num cocho. Perguntei imediatamente:
- O que é um cocho?
- Um cocho? Ah um cocho é aquele lugar onde os cavalos e bois bebem água.
Que dó de minha irmã! Nem consegui rir. Ela gostou da piedade e continuou:
- Pois é; enquanto mãe agasalhava você toda no berço, eu de lá do cocho recebia era a coberta nos peitos, que ela jogava: eu que me embrulhasse sozinha!
Fiquei horrorizada. E, como não conhecia um cocho, pedi pra que ela o descrevesse. No dia em que a gente viajar eu lhe mostro um, garantiu, com uma firmeza desconcertante.
Na primeira viagem feita em família, quando um cocho despontou no meio do mato ela me cutucou atrás, no carro, e falou baixinho: Olha o que é um cocho.
Quase morro de pena de minha irmã!
Não me contive, e fui tirar satisfações com mãe. Como é que tu fazia isso com a própria filha? Botava ela pra dormir num cocho? Mãe, perplexa: O quê?
Detalhei tudo; quando vi, mãe estava chorando. Chamou minha irmã e, entre soluços, lhe perguntou que história era aquela de cocho. Minha irmã, com a cara pra cima, não sabia o que dizer. E mãe chorava, lembrando todo cuidado que teve - igualzinho - com suas duas meninas. Foi um drama. A risada ficou perdida, e minha irmã foi se desculpar dizendo que, ao inventar aquela história, apenas queria me agradar porque eu estava sem sono e lhe implorara mais um causo.
Imagem: "Cocho vazio".(www.flickr.com)
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6 comentários:
Menina, brincar com mãe e maternagem é sacanagem.
Esta é a Menina da Ilha que tanta falta nos faz...
Bernardo a queimar meus dizeres, eim Primaldo? Sacanagem, também, Muadiê, é a MENINA nos abandonar.
Gente, só pra esclarecer, quando falei menina, não me referia a Menina da Ilha, é apenas um jeito meu (e baiano) de falar: menino, menina.
Como mãe, me identifiquei com a mãe das meninas e não com Aero e Menina, por isso fiquei condoída.
Beijo
Aeronauta, descobri que Martha Galrão tem um irmão Menino da Ilha também. Veja: http://www.mariamuadie.blogspot.com/
Nunca esqueci o drama que mãe fez. Me levou na casa da mulher que comprou meu berço e contou o meu caso tintim por tintim aos prantos, para a criatura. A mulher me olhava como se eu fosse um monstro.Mas ainda me lembro bem que mãe lhe enrolava toda com a coberta deixando vocë parecida com um charuto e comigo não fazia nada disso. Acho que o ciúme de uma menina de sete anos falou muito alto naquele causo.
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