domingo, 23 de novembro de 2008

Retrospectiva: Itinerário das volúpias


Quando sumo, não busco estrelas. Ganho a noite inteira, no escuro. Vou de déu em déu, em todas as partes do mundo em que habitam minhas memórias. Me vejo pequena, aos dois anos, enfiando o pé num fole com o prego solto e o sangue descendo. Não sabem o que é fole? Um troço que esquenta ferro de passar roupa. Vejo também, e muito, um terreiro longo em frente à nossa casa e eu, ainda aos dois anos, brincando de lá pra cá com uma peneira de catar feijão entre as pernas. E uma sensação gostosa...! Nem sabia o que era aquilo, mas gostava tanto! Pressentia, sem saber direito, que tudo era volúpia. E que o mundo era aberto, o terreiro bastante amplo, a ponto de eu poder dar nele quantas voltas quisesse, e a qualquer hora do dia, com a peneira entre as pernas. Oh, o mundo!, cheio de brincadeiras.
Continuando de déu em déu, bato na porta de uma cena antiga: ainda aos dois anos, fazendo cocô no fundo do quintal. Chega perto de mim um pintinho e também faz cocô. Pergunto: "Tu também está com dor de barriga, pintinho?"
No mundo tudo é a mesma dor, o mesmo alívio; parece mesmo que eu já sabia de algumas coisas.
De algumas coisas...
Vindo para a cidade, deixando a roça em cima de um caminhão de mudanças... Eu e minha irmã vestidas de macaquinhos pretos de bolinhas brancas. A cena é minha avó descendo a ladeira de sua casa para se despedir de nós. Tinha três pra quatro anos e olhava bem meu berço indo em cima do caminhão. Chegando na cidade, a casa numa ruazinha pequena, apertada, casa de três grandes janelas, piso de tijolos. Mãe nos ensinando a escovar os dentes, depois de todas as refeições, na porta da cozinha com um copo na mão. Nesse quintal tinha uma pedra grande que leva a lembrança da primeira vez que chupei uma bala. Bala de mel. Eu e minha irmã estávamos sentadas nessa pedra no meio de uma tarde quando mãe fez a experiência conosco: primeira bala. Dividiu no meio para evitar possíveis cáries. Fiquei chupando aquela bala devagar, mas tão devagar que dura até hoje na minha boca. Sinto o gosto de mel no finalzinho, ele se diluindo, e nunca desaparecendo por completo.
Depois veio a hepatite. Muitos mimos, muito suco de lima, muito afeto. Todo mundo com medo de que eu morresse; minha irmã me deu seu copinho de alumínio preferido, mãe me enchia de cuidados e pai... Não me lembro, sei que ele me levava, junto com mãe, para os médicos. Fui até Salvador, vejam só. Três meses de recolhimento em casa, brincando com zilhões de caixas de remédio. Achava elas bonitas e fazia uma grande coleção. Senti que minha irmã e amigas tinham inveja de meu estado, as regalias eram muitas, os dengos eram demais. Foi nessa época que virei "manteiga derretida", apelidozinho miserável que os vizinhos da rua colocaram em mim. Chorar era prazeroso, era bom. Eu estava muito dengosa, mãe e pai diziam.
Aos sete anos descobri que olhar pai tomar banho nu, debaixo da caixa d'água, era a melhor atração do mundo. Via os segredos do seu corpo e contava pra todos que iam lá em casa: seus amigos, seus compadres, seus afilhados. Eu ria, ria, ria, contava detalhe por detalhe. Ah, como era bom ver coisas.
Mostrar coisas também era bom. E como já escrevi aqui, aos sete anos mostrava minha calcinha cor de rosa para Eugênio, um meninão bobo de quinze anos, e sua família na hora do jantar, todas as noites, sem interrupção. Era tão bom me mostrar. Adorava. Principalmente porque Eugênio morria de vergonha e todos os espectadores riam, riam, riam. Eu era o grande centro das atenções e meu corpo se firmava no mundo. Meu corpo.


Imagem: www.flickr.com

12 comentários:

Carlos Rafael Dias disse...

Belas memórias, as suas, Nautas! Eu também tive esse famigerado apelido de "Manteiga Derretida". Eu também chorava pra caramba. E ainda continuo chorando.

Anônimo disse...

Meu Deus, que lindo!Eu fico alumbrada com o seu jeito de contar as coisas. Beijos. M.

Bernardo Guimarães disse...

que lembranças...e sua coragem de recordá-las, parecendo que saiu ilesa dos ritos quase obrigatoriamente universais.

Menina da Ilha disse...

Claro que tinha inveja. Mãe se transformava quando nos via doente. Se não sou traída pela memória, lembro até o nome do seu remédio mais desejado: Aprilin?, parecia suco de laranja.

Unknown disse...

Os colegas ao lado já falaram das belas memórias, da riqueza da escrita, da coragem. Reafirmo. Acrescento: mostrou bem a calcinha cor-dê-rôsa para agora ficar escondidinha em Aero? Oi foi Aero quem mostrou? Beijos da menina que também era dengosa e dengada mas ouvia de adultos "engula o choro".

Nilson disse...

Uau! E que memórias freudianas, carregadas de volúpia infantil. Esse seu jeito de contar as coisas é o que se pode chamar de estilo, e que estilo! Confesso que também chorava muito, mas com homem é dose porque boys don't cry.

Janaina Amado disse...

Lindo!

Muadiê Maria disse...

Aero,
aquele comentário que você fez em meu blog provocou revoluções de emoções. Justamente porque veio dessa pessoa que escreveu esse texto lindo.
um beijo,
Martha

Anônimo disse...

Viajei nas suas memórias, ou seja, voltei às minhas. Nunca fui dengado não. Nem mesmo uma vez que levei um talho na âncora enferrujada do barco de seu Tião. Meu consolo foram três Benzetacil. Agora passei a mão na cicatriz, para lembrar melhor. Lá no meu interior também não tinha muita bala não. Eu chupava Mesarin, um remédio para vermes que pai vendia. Tinha uma embalagem dourada. Mas uma vez, eu que ainda não sabia ler, chupei três ou quatro Acetin (remédio para febre) adulto. Nossa! O mundo rodou. Vomitei tudo. Nem assim ninguém me dengou. Levei foi carão de pai. Levei um coice de cavalo também, quando pequeno. Bem na Praça da Matriz. Desmaiei. Mais uma cicatriz, que tento esconder jogando os cabelos por cima. Tem um bocado de coisas mais. Eu era retadinho. E pai e mãe cuidaram muito bem de mim. Hoje sou feliz, e não tenho vermes.
Foi bom passar por aqui. Eu, que sou tão acanhado, até que me soltei.
Abraços.

Anônimo disse...

Queria saber poder falar assim de mim. Vou te lendo e aprendendo.

Domingos Barroso disse...

Que mansidão e coragem,
que leveza e entrelaçamento.
Lindas recordações, abraços.

Anônimo disse...

René Magritte nasceu em 21 de novembro de 1898, em Lessines, na Bélgica. Este texto começa propositalmente com dados biográficos, já que Magritte os odiava, e irritar um artista já falecido é uma atitude que ele certamente aprovaria do alto de seu pedestal surrealista. "Detesto meu passado, assim como o de qualquer pessoa. Detesto a resignação, a paciência, o heroísmo profissional e os belos sentimentos obrigatórios. Também detesto as artes decorativas, o folclore, a publicidade, vozes anunciando algo, a aerodinâmica, os escoteiros, o cheiro de naftalina, fatos do dia, e gente bêbada." Tomemos, pois, mais um gole de uísque e continuemos com os dados biográficos.
Magritte pouco se lembrava da própria infância, e suas memórias ficariam melhor num de seus quadros que numa autobiografia, já que se referem a fantasias de padre, a misteriosos baús e a eventos estranhos como um par de balonistas com roupas de couro que ficaram presos ao teto de sua casa, com o respectivo balão murcho e inútil. Junto a este enevoado de lembranças, aparece a morte da mãe de Magritte, afogada em 1912.
Nao publique.
Bicho do mato.