terça-feira, 30 de dezembro de 2008

"Soltar a voz"


Lê-se em meio à dedicatória: "minha mãe deixou em minha memória o som deste livro."

"Rosália Roseiral" - esse romance é uma composição musical - que me perdoem a rima. Eu que sempre sonhei, na minha audácia assumida, ser cantora, vibrei em cada partitura desse livro. Se demorei para dizer isso foi pro mode (aqui roubo vergonhosamente a espontaneidade da autora-narradora Maria Sampaio) o medo de desafinar. Maria não desafina nunca, em nenhum capítulo. E toda crítica não deixa de ser uma tentativa de arremedo frustrado da escrita. Eis, pois a "cisma": sei que a crítica sempre desafina, nessa tentativa apaixonada de contar sobre a leitura.
Os personagens desse romance são compostos pela linguagem harmoniosa e dessacralizada de sua autora. Se Joãozito O pusilânime (marido de Rosália), que usava "cuecas de seda", realmente existiu, não importa. Importa é a veracidade maravilhosa de sua pessoa, descrita numa verve irônica e jocosa, num primor de estilo:

"(...) Ele, se burro não é, não prima pela inteligência - é aquela coisa chata de rapaz esforçado, voltado para o estudo opaco, dirigido, lutando a ferro e fogo por boas notas. É o típico ignorante que fala besteiras com imponência.(...) (p.47)

"O bem querer chega a jato" (p. 92), concordo com isso, Maria Sampaio. Pois não é que me apaixonei, tal qual Rosália, por esse pusilânime vilão? E sinto pena quando o trapaceiro desaparece lá pela página 141, depois que deixou "barba e cabelo crescerem à moda de Antonio Conselheiro" e foi começar vida nova em localidades várias. Desculpe, Maria, mas vou reproduzir o que está impresso no livro como propaganda do médico pusilânime, vendedor de ilusões óticas nos lugares por onde passa:

TENDES OS OLHOS
CASTANHOS
OU PRETOS?
QUEREIS TÊ-LOS
VERDES
OU AZUIS?
PROCURAI O
DR. ALBERGARIA

Das 8 às 12 hs.
e das 15 às 18 hs.

Praça da Matriz

A cidade toda queria ostentar na cara tal milagre:

(...) Todo santo dia iniciam-se novas turmas, tudo de pagamento adiantado. Pingue-se uma vez por dia o milagroso colírio, ordena. (...) Ao chegarem os bestas para a feira seguinte vêem nos companheiros os castanhos e pretos olhos de sempre.(...) (p.141)

Daí em diante, pronto, o personagem "evacuou". Aproveito a fala do narrador e acrescento que errei "no verbo", pois "queria dizer evadiu-se, acertando, sem saber, na definição de Joãozito: um cagão."
Por esses fragmentos nota-se a natureza espontânea da linguagem. Tanto que esquecemos que estamos diante da leitura de um romance: o narrador é uma pessoa "de mesmo", talvez a própria Maria Sampaio a tratar tão bem os amores de sua protagonista:

(...) A evitar as paqueras de Carlinhos Veiga (até certo ponto... um dia não resistiu e só de brincadeira - para espanar um pouco a poeira da tabaca -, levou o amigo para casa, passaram uma semana de gozos e folias). (p.145)

"Rosalia Roseiral" é a composição musical de muitas vidas. Vidas reais que se cruzam misteriosamente com a ficção, nos deixando com as mãos abanando se nos debruçarmos apenas tentando buscar biografias. O mais interessante é o leitor perceber esses liames ao ler a história musical brasileira, reconhecendo suas pontes "reais" emaranhadas naquilo que não sabe se real foi (e o que é?). O que mais interessa, de fato, é a pincelada, sempre irônica, do narrador, quando se refere à personalidade de cada um desses seres que passam pela História, demonstrando, com isso, a força da narrativa, da construção romanesca:

"(...) A qualidade do toque de Fortunato fará falta nas tocatas, mas sua presença, coitado, nem tanto, sempre foi esmorecido." (p.155)

Romance com grandes revelações. Romance que, ao fecharmos a última página, nos deixa diante de um amplo salão escuro, repleto de perplexidades, e ao mesmo tempo de felicidade, afinal só a arte sabe conjugar tão aparentes dissonâncias.
Fazendo uma analogia com a música, ao virarmos a última página desse livro internalizamos o conselho de Rosália, que aprendeu do mestre Almiro: se queremos cantar devemos "soltar a voz". E, como diz o narrador, "Sempre de olho aberto - o longe que o olhar alcance, a voz irá."(p.150)
Solto pois, agora, a minha tímida voz. Na voz afinada de Rosália. Na voz afinadíssima de Maria Sampaio.


*SAMPAIO, Maria Guimarães. Rosália Roseiral. Rio de Janeiro: Record, 2008.

6 comentários:

Anônimo disse...

Aero, um 2009 bacana pra você. Bela resenha do livro de Maria. Concordo com sua análise. O livro faz o leitor viajar musicalmente no enredo. BJ

Anônimo disse...

Aero, desejo-lhe um 2009 em que você solte cada vez mais sua linda voz. Bj

P.C. - Eu fui lendo sua simpatia e me assustei, pensei que tinha que engolir o papel! rs Depois reli e tudo ficou bem.

Unknown disse...

Aero, toda emôchion nem sei como agradecer suas bela crítica de Rosália.
Há dias sem ler os blogs, (enjôo é um saco) hoje o telefone tocou e, da Alemanha, meu querido Miro Paternostro, contente, contava da crítica. Talvez você o conheça do tempo da universidade. Ele é da sua geração.
Beijos alegres, contentes, gratos!
Maria

- Luli Facciolla - disse...

Maria é mesmo estupenda!
Estou lendo Rosália aos poucos... Não quero que acabe logo!

Nauta!
Que 2009 seja um ano de muitas conquistas, alegrias, paz, inspiração, amor e algum din-din, porque ninguém é de ferro!
Foi um prazer muito grande conhecer você neste ano que finda!
Feliz ano novo!

Muitos beijos

Anônimo disse...

Já te mandei um emeio risonho pelo 2009 que é-vem aí. Não fiquei sabendo das simpatias lavrais, lavrianas ou lavralinas, uma pena. Espero seguir lendo muitos outros textos deliciosos de sua lavra...rs... Abr. e bom recolhimento hoje à noite. (carlos)

Unknown disse...

Aero, tentarei levar sua resenha para meu blogão (você conhece?). Para entrar nele vá pelo continhos e clique na capa de Rosália ou Estrela.
Sou ousada demais, comunico em vez de pedir. Porque sei: você não se importará. É tudo blog. Estamos todos no ar.
Tomara que eu acerte levar.
Beijos gratos de Maria